RECORTES ENTREVISTA: Os Cinéfilos da USP
A Recortes entrevista os estudantes de cinema responsáveis pelo vídeo que inquietou a Internet na última semana. O crime deles? Gostar de filmes.
OS TEMIDOS CINÉFILOS DA USP
Uma trend de vídeos recente tem gerado indignação nas redes sociais. A prática consiste do seguinte cenário: Um estudante universitário de cinema aborda um colega de curso desprevenido. Filmando-o com seu telefone, o estudante pergunta: “fulano, qual é o seu filme favorito? E o que você mais detesta?”, e daí, a resposta. Essa mesma pergunta é repetida para outros colegas, ocasionalmente um professor da faculdade até participa da brincadeira. Essas respostas são então compiladas num vídeo que é posteriormente publicado na internet. Revoltante, né? Pois bem…
Nos últimos meses, o formato do vídeo descrito acima tem se espelhado por diversas faculdades de cinema brasileiras. A escolha dos filmes, geralmente feita sem muita reflexão e em tom de brincadeira, tem evidenciado uma certa diversidade no gosto desses universitários, tanto de instituições públicas (UFMT, UFPE, UNESPAR) quanto privadas (ESPM-SP, PUC-PR).
Na segunda-feira (16/04), chegou a vez dos alunos da ECA-USP compartilharem seus filmes prediletos em um vídeo publicado no Twitter por Isabel Praxedes. O vídeo se tornou um dos maiores assuntos da plataforma por 3 dias consecutivos e foi criticado por exibir uma suposta “vaidade intelectual” dos alunos, com escolhas de filmes “elitistas” e “desconectados com o gosto do povo”. O vídeo gerou tamanha repercussão que virou pauta para uma edição completa do podcast “Diário de Bordo”.
No dia 20 de abril de 2023, Pedro Chamberlain conversou numa chamada por Zoom com Henrique Florêncio, Isabel Praxedes, Benjamin Medeiros e Maria Clara Portela sobre a idealização do vídeo, sua repercussão, e a vivência deles como estudantes e trabalhadores no meio do audiovisual.
Henrique Florêncio atua como produtor, assistente de direção e diretor em projetos de curta-metragens e longa-metragens independentes. Nossos Últimos Dias, projeto de TCC da turma de 2019 da ECA-USP, é o primeiro projeto em que ele assina produção. Você pode financiar a produção deste curta universitário participando de uma rifa. O sorteado receberá 1000 reais. O sorteio ocorre no próximo sábado, dia 29 de abril.
Isabel Praxedes é estudante de Audiovisual na ECA-USP, com ênfase em Direção de Fotografia. Trabalha como fotógrafa, videomaker e com fotografia de cinema.
Benjamin Medeiros já atuou como diretor, produtor e montador de curtas. Também trabalhou como assistente de direção no curta-metragem de Henrique, Nossos Últimos Dias. É co-fundador e curador do Cineclube Vânia Debs. Participava do elenco de apresentadores do podcast de cinema Mesa em Cena.
Maria Clara Portela atua como roteirista e diretora. Em 2021, dirigiu e realizou o videoclipe de "Tu Pensa", integrou a turma do Laboratório de Narrativas Negras e Indígenas (LANANI), parceria da Globo com a Flup, onde desenvolveu o argumento de um longa-metragem, e foi selecionada para uma rodada de negócios do SérieLab. Em 2022, integrou a sala de roteiro do podcast narrativo “Depois Que Tudo Mudou”, original Globoplay, e trabalhou como assistente de roteiro no filme original Amazon Prime Video, O Primeiro Natal do Mundo. Atualmente, é estagiária de roteiro na produtora de desenvolvimento Jardim Filmes.
Pedro Chamberlain: De quem partiu a ideia de fazer o vídeo elencando os filmes favoritos (e não tão favoritos) de vocês?
Henrique: Foi a Isabel que deu a ideia.
Isabel: Então, [risos]. Viralizou recentemente um vídeo da FAP de Curitiba, do curso de cinema de lá. Eu fui um pouco sem pretensão, mas esse vídeo tinha bastante gente que gostava de animações dos anos 2000, tipo Shrek 2, essas comédias. Aí eu falei “ah, eu vou fazer no audiovisual e vou ver qualé”. Eu postei um tweet, “10 likes e eu faço com a USP”, e um monte de gente curtiu. Falei, “ah, talvez esteja requisitado”.
Mas aí quando eu fui fazer com a galera, eu não imaginava… Eu fiz com uma galera que eu já sabia que iam ser filmes não tão conhecidos, mas tiveram calouros que eu não conhecia que me surpreenderam. De darem umas respostas de uns filmes que eu gosto muito! E eu fiquei feliz com esse primeiro vídeo1. E não teve… Não sei, eu sou um pouco contra… Eu não gosto muito de cinema comercial, eu não assisto há muito tempo. Desde que eu sou adolescente, eu já não gostava muito. Eu não sou super cinéfila, mas cinema comercial é um negócio que me irrita. Eu não gosto de “piadas” [risos]. Das piadas da Marvel e tal.
Mas foi um pouco surpreendente. Eu sabia que ia viralizar, porque acho que é um conteúdo interessante e porque a galera odeia “uspiano” num geral. Eu imaginei que iam falar “ai, o uspianense é insuportável” e tal. Mas eu acho que foi um pouco além do que eu imaginava.
Pois é! Eu imaginei que vocês não esperavam toda essa repercussão comparado a outras faculdades. Vocês devem ter visto que o próprio Affonso Uchôa comentou na postagem (em tom de brincadeira) porque alguém falou que odiava Arábia (2017). A MC Carol reclamou que ninguém citou O Poderoso Chefão!
Aliás, você falou que não gosta de piadas [da Marvel]. Ninguém aqui é muito adepto da Marvel?
Benjamin: Acho que é uma etapa que você passa com a idade [risos]. Tipo, começo do ensino médio ainda vai rolando, mas chegando na faculdade [de cinema] a onda acaba. A gente vê pela nossa sala. A galera entra na graduação e vai envelhecendo… Comparando com outros amigos meus, de outros cursos, que ainda são muito dessa febre. Uma parte entra gostando e vai deixando de ver valor… E nem por desgostar, é mais pelo valor enriquecedor.
A repercussão do vídeo ocorreu de várias maneiras. Uma das críticas mais comuns que eu vi foi das escolhas serem supostamente elitistas. Um rapaz chegou a debochar que “ninguém [no vídeo] citou um filme que exista de verdade”. Como vocês encaram uma acusação dessa?
Maria Clara: Eu acho que é muito engraçado as pessoas assumirem que a gente é elitista por gostar desses filmes, porque não faz o menor sentido! O curso audiovisual da USP tem sim muito elitismo, as cotas foram implementadas na USP a pouco tempo. Eu entrei pelo SISU, e muita gente da minha turma entrou pela SISU. Isso não faz o menor sentido, entende? Porque, agora existe uma mudança no curso. Não são só pessoas de classe alta, não é só mais gente essencialmente rica. Só que… As pessoas assumirem que nós somos elitistas por gostarmos desses filmes é um absurdo! Falando por mim, eu não me encaixo nesse perfil. Eu acho meio sintomático porque, no fim, quem tá sendo elitista são elas. O gosto não tem nada a ver com a classe que você tá. É bem absurdo para mim.
Benjamin: É o que a Clara falou. Se você gosta de alguma coisa que a pessoa desconhece, você é elitista. Se você é de uma classe inferior, você é obrigado a viver na ignorância e gostar de conteúdo mastigado, que chega a você por vias mais fáceis. Esses comentários são muito incômodos. Muita gente que aparece no vídeo é da minha turma e da Clara. Metade da nossa turma não mora na cidade [de São Paulo], e os que moram, metade vive na Zona Leste, que é uma área mais periférica. Ainda é um curso elitista, mas vir com o discurso de que gostar de certo conteúdo “de arte” tá ligado a elitismo… Gera muito incômodo. Eu acho uma coisa burra, e me incomoda muito, porque na prática não é assim. Eu não consigo pensar qual a linha de raciocínio que a pessoa faz para chegar nisso.
Isabel: Parece que pobre não pode gostar de arte, né. Qualquer coisa que não seja super simples e mastigado é… “Ai, não, você não tá acessando as classes mais baixas!” Sendo que elas conseguem acessar! Eu acho que falta acesso, e um monte de outras coisas, de educação, mas elas conseguem fruir. Acho que muitas pessoas que comentaram no vídeo nem chegaram a pesquisar quais são esses filmes, e aí sem nem saber do que eles tratam, que filmes eram aqueles... Tiveram muitos comentários burros. É complicado dialogar com gente que nem sabe do que tá falando.
O Caio Augusto, né?
Benjamin: É! Tipo, vários estavam na Globoplay, na HBO. Não são filmes que estão na frente do catálogo, mas estão no catálogo. E não são filmes inacessíveis. São filmes que você consegue ter um contato mais fácil. O que me surpreende mais não é a pessoa não conhecer, é ela não procurar. Se ela procurasse, ela ia ver que tava ali, no alcance dela.
Essa acusação me intriga bastante, porque ela parece rondar muito mais o cinema como forma de arte do que em outras áreas. Um estudante de Letras, por exemplo, não é taxado de “insuportável” por gostar de Nelson Rodrigues ou Clarice Lispector. Falar sobre um filme do Sganzerla ou da Helena Solberg, no entanto...
Maria Clara: Eu acho que as pessoas não conseguem reconhecer que isso é um ofício. O audiovisual, a gente tá estudando, se profissionalizando, se especializando… Isso requer estudo, requer fundamento. E as pessoas não reconhecem que fazer um filme não é tão fácil. Na verdade, é muito difícil! Elas não reconhecem que a gente tem que estudar isso de verdade. Conhecer o que a gente gosta e o que a gente não gosta para sermos profissionais melhores. Alguém respondeu no tweet, e eu concordo: “se fosse um estudante de arquitetura citando alguém que eles não conhecem, ninguém falaria nada”. Obviamente ninguém ia falar nada, porque [arquitetura] é reconhecido como algo sério, como uma ciência. Algo que requer estudo e esforço. E eu queria muito que as pessoas entendessem que fazer um filme bom é muito difícil. Muito, muito difícil.
Benjamin: Tudo perpassa a grande discussão histórica que até hoje tem gente com dificuldade em aceitar que o cinema é uma arte como todas as outras. Por mais que ela esteja mais vinculada ao entretenimento, você pode ter aprofundamento. É difícil pegar um estudante de teatro e falar “qual a sua peça favorita?”, “seu diretor de teatro favorito?”, mas eu acho que isso também rola com o teatro. O cinema ainda é mais extremo, mas em música, arquitetura, pintura, literatura, isso não rola. É mais com teatro e cinema.
Isabel: Eu acho que, como o cinema tá muito ligado ao entretenimento, fica um pouco difusa essa coisa da “arte versus o entretenimento”. Tem uma questão muito passional que envolve gostos. Como muita gente tem acesso e assiste – diferente de ler livros, porque não tem tanta gente que lê muitos livros ou vê peças – eu acho que rola uma rivalidade, quase que de cultura pop. Talvez por isso que tenha incomodado tanto. Porque é isso, são estudantes que não dão a mínima pro filme que marcou a sua vida. E isso até faz refletir como é importante o nosso trabalho. A gente impacta a vida de muita gente. Às vezes eu fico me perguntando se vale a pena gastar milhões, vendo sets grandes. E vendo esse vídeo, vejo que o audiovisual permeia muito a vida das pessoas, e acessa muitos lugares emotivos, por isso que todo mundo ficou tão revoltado. Acho que por esse ódio do que é diferente, pessoas… Sei lá. Teve um ódio um pouco gratuito. Acho que é essa onda de anti-intelectualismo.
Eu queria justamente perguntar sobre isso, e imagino que isso preocupa vocês. Vimos uma porção tão grande de pessoas caçoando da opinião de vocês. Vimos gente que trabalha com entretenimento caçoando do vídeo, da própria faculdade de cinema como instituição, taxando-a como um espaço de imaturidade. Vocês acham que isso é fruto de alguma corrente de anti-intelectualismo? Até um desprezo por arte, um negócio meio reacionário?
Henrique: Na minha visão, o que mais me pegou nessa repercussão toda foi o dia que um podcast do Spotify, lá da Globo, pegou [o vídeo] e começou a caçoar. Tipo, um podcast grande, de entretenimento, um pessoal que acompanha cultura num geral. Longe de mim querer analisar a qualidade do podcast, mas eles só quiseram caçoar. E é um vídeo que é basicamente só a gente… falando opiniões, tipo, na hora. Tinha gente que foi pega de surpresa. Eu mesmo, no vídeo, tava dirigindo! Tinha gente que tava trabalhando no meu TCC, em set. Ou seja, não foi pra aparecer. Eu conheço essas pessoas, e são pessoas que gostam desses filmes porque a gente estuda. Por exemplo, o Benjamin organiza um cineclube. A Clara trabalha com roteiros. A Isabel com fotografia. A gente é permeado o tempo todo por isso. Eu não acho problema nenhum a pessoa falar [que o filme favorito é] Shrek 2! Tanto faz!
A questão é: a gente gosta. Porque no primeiro ano de faculdade, nas matérias teóricas, nós só vemos filmes até os anos 30. Até o segundo ano, só vemos filmes até os anos 60. A gente é treinado a estudar história. Eu não teria feito isso, provavelmente, se eu não tivesse entrado na faculdade. Talvez eu conhecesse muito menos. Eu tenho o privilégio de estudar com professores, gente da academia que entende do assunto, e não são informações que estão de fácil acesso para o público. Se eu procurar no YouTube, por exemplo, eu não vou achar aulas como as que a gente tem aqui ou em outras faculdades. A gente vive muito isso, e eu acho que é um processo natural. Eu acho que tem a ver com anti-intelectualismo, mas não só isso. Tem a ver com desconhecimento. Essa coisa diferente, do novo. Não sei se reacionarismo é uma boa palavra, mas… Também, tem a ver. É o diferente, algo que não estamos acostumados. Quando eu entrei no curso, eu pensei “pô, essa galera gosta de uns filmes diferentes”. Com o tempo eu fui aprendendo que, tudo bem, não é pra se sentir intimidado porque a pessoa gosta de um filme que eu não conheço. Hoje em dia eu anoto, sabe? Se eu não conheço, eu anoto.
Maria Clara: Sim! Eu mesma não conhecia o filme que o Benja falou. Quando eu vi o vídeo, eu fui pesquisar e coloquei o filme na minha lista para assistir, entendeu? Eu não fiquei tipo… “Ai meu Deus, como ele está me humilhando”. Eu só fiquei… Boa indicação! Gostei do título, muito legal! E eu vi muitas pessoas falando, também, como… Parece que é excludente você gostar de Gosto de Cereja e Shrek 2. Como se as duas coisas não pudessem coexistir. Eu acho que isso é de uma ignorância muito grande, e eu já tive essa ignorância.
Eu participei de um laboratório com uma autora de novelas que é muito famosa, a Rosane Svartman. Inclusive, a novela dela tá passando agora na Globo, Vai na Fé. Tipo, é uma novela que é super popular, tá na Globo, “piadas” e tudo mais. Nesse laboratório, ela foi lá e citou [Sergei] Eisenstein no meio das referências dela! A gente não associa que, pra chegar no Shrek 2, a pessoa estudou os clássicos. Tudo agrega. Uma coisa não exclui a outra. Então, é muita ignorância das pessoas acharem que não pode gostar das mesmas coisas ao mesmo tempo.
Benjamin: Fora que na Internet não se aceita uma opinião diferente. Se eu gosto de Shrek 2, você tem que gostar de Shrek 2 também. Se você tá estudando cinema e você não gosta do filme que eu amo, você tá estudando errado. Rolaram várias piadinhas, mas muito comentário sério. E mano… [risos] Shrek 2… Tipo, quando que entrou a onda de todo mundo amar Shrek 2? Eu fiquei out disso a minha vida inteira, tá ligado? Eu nem lembro direito o que é o Shrek 2 [risos]. Quando eu era criança eu não curtia muito, eu preferia o 1, eu acho, o 3. Sei lá.
Maria Clara: Eu adoro Shrek 2! É o meu favorito dos Shrek's. Mas eu acho que o que rola é que… Eu vi um comentário que eu fiquei “Não, essa pessoa tá projetando muito”. Ela pegou assim: “Ah, é muito engraçado ver jovens de 18 anos” – ela assumiu que a gente tinha 18 anos [risos] – “falando ‘haha, eu vou citar esse filme e ninguém vai conhecer’. Eu já tive 18 anos, mas agora que eu tenho 30 eu consigo ver como eu era ignorante”… Tipo, do que você tá falando!?
Eu vi que alguém chegou a responder essa pessoa dizendo que não havia problema gostar de filmes “de arte” que passam em faculdade. Aí, ela respondeu “não, mas filme que você estuda é diferente de filme que você gosta”.
Maria Clara: Sim! Sim! E eu fiquei… Isso não faz o menor sentido!
Benjamin: Como se você não pudesse gostar de algo que não tá mastigado, sabe? Só gostar de coisas que te “impactam”, e não que você vê algum refino… E o pessoal ainda pegou Shrek 2, que é uma animação recheada de piadinhas diferentes, uma comédia construída, pautada em desconstruções de filmes clássicos.
Por curiosidade, o Benjamin falou de infância… Esse interesse pelo cinema: Vocês tem recordação de onde se originou?
Henrique: O que eu mais lembro é de comprar DVD pirata. Quando eu tinha 11 anos, eu sempre gostava de ir na banca. Na época era 2 reais, eu comprava o DVD pela capa e levava pra assistir em casa. Tudo pirata porque… Eu não venho de uma família rica, tinha condições, mas não era rica. E depois disso, eu lia muito a Wikipédia. Aos poucos eu fui vendo mais filmes, criando repertório, depois pesquisava na Wikipédia. “Pô, quem é esse diretor?”, “que filme é esse que ganhou o Oscar?”, “que filme é esse que tem a melhor bilheteria do mundo?”, “esse filme de herói, quem fez?”. Então, eu fui assim, tentando entender o que era esse universo.
Maria Clara: Pra mim, quando eu tinha 10/11 anos, eu – eu sempre gostei muito de cultura pop num geral, então assistia muito filme. Aí eu comecei a ler muito livro, comecei a escrever, escrevia muita coisa no Wattpad… Não era fanfic, história original mesmo! E eu imaginava as histórias como filmes e como séries! E foi uma época que eu vivia assistindo série, vivia assistindo muito, muito filme. E por causa disso, eu comecei, igual ao Rique, pesquisar na Wikipédia quem eram os diretores.
Eu também sempre mexi muito no Twitter, então eu via a galera cinéfila postando coisas. Achava incrível [as postagens de] frames dos filmes, daí comecei a montar listas intermináveis de filmes que eu precisava ver. E Amélie Poulain, um dos filmes que me marcou muito [risos]. Foi um filme que eu assisti e pensei “meu Deus! É isso que eu quero fazer!”. Foi um dos filmes que eu pensei “caramba, eu queria muito ter sido a pessoa que fez esse filme”. Mas eu nunca achei que eu poderia entrar no audiovisual, eu não sabia que audiovisual tinha faculdade.
Isabel: A minha pira com audiovisual nem começou tanto com cinema. Eu comecei a me aprofundar um pouco, bem pouco, na adolescência. Comecei a assistir uns outros filmes e tal. Foi nessa época que eu já não assistia filme da Marvel. Eu sou bem do interior, aí no cinema não passava muito filme que não fosse blockbuster. Mas eu tinha uma pira muito visual. Eu gostava muito de propaganda de perfume, era muito sofisticado, né? E aí, na real, eu gostava muito dessa sofisticação. E desde que eu me conheço por gente, eu gostava de foto.
Eu fui adentrando, fotografando mais conforme a câmera que eu tinha, que dava pra explorar mais ou menos… Porque a gente tá sempre refém ao equipamento no fim das contas, por mais que falem que não. Aí eu entrei na ECA–USP em 2015 em publicidade, porque eu gostava muito de propaganda. E aí eu vi que não me contemplava, que meu futuro era trabalhar em agência. Eu era ruim em tudo, absolutamente tudo. Eu não gostava, era um curso bem ruim na verdade. Aí fui fazendo umas matérias da galera das [artes] cênicas, gostava de pintar e tal, mas eu sentia que o audiovisual era o lugar que mais me daria vazão pra parte artística, que é algo que sempre me acompanhou, a arte num geral.
Eu acho que, assim como a Maria Clara falou, as pessoas não entendem o cinema como trabalho. É muito difícil fazer cinema, por questão do equipamento, do aparato, da quantidade de pessoas, do set. E é difícil você ter noção disso, porque você precisa de acesso. Às vezes você gosta de ver filme mas não gosta de fazer filme. Estando um pouco próximo do pessoal da ECA, aí eu entendi mais ou menos o que era fazer e como isso me contemplava. Nessa minha estadia por São Paulo, eu acabei começando a frequentar festivais, e a minha pira foi sempre essa, ficar vendo o que está sendo feito. Eu gosto muito de ver os filmes como uma forma de estudo, do que eu posso fazer, sabe? E eu gostava muito de filmes de festival porque eu consigo ver o que as pessoas estão fazendo agora, em especial no Brasil. Eu gosto muito dessa relação.
Benjamin: Em casa, na família da minha mãe principalmente, é muito forte um gosto por cinema. Por isso que me incomoda tanto o discurso de que gostar de cinema é uma parada elitista. Todos os meus primos ainda moram na COHAB 2, que é um conjunto habitacional em Itaquera. Eu cresci em Itaquera. Minha mãe é nordestina, veio pra São Paulo com 11 anos. Minha mãe tem um gosto muito apurado por cinema, de ver muito filme, e os meus primos… Eu cresci em um mundo envolto por pirataria [risos]. De aniversário eu ganhava CD pirata cheio de filme dos meus primos, porque eles tinham uma basezinha lá no apartamento de ficar fazendo jogo e filme pirata e dando pra amigos. O meu pai também entrou muito nisso, ele virou um grande entusiasta de levar eu e minha irmã pro cinema. Então, faz parte da minha família consumir cinema. E não é que minha mãe veja nouvelle vague… Não, até pouco tempo atrás ela só ficava em filme americano, com o que tinha contato. Mas ela sempre foi de ficar vendo muito filme, de ter apreço, saber diretores, então eu sempre tive esse contato. Os meus primos eram viciados em Tim Burton, toda hora eles falavam “nossa, olha aqui o Tim Burton, todos os filmes têm isso, não sei o quê”. O Henrique falou que também comprava muito DVD pirata, mas eu guardava essa grana pro videogame [risos]. Eu ia muito com o meu pai pra uma locadora perto de casa que você pagava sete reais pra alugar sete filmes no domingo. Cada filme por um real! E aí eu sempre ía. Seis filmes eu escolhia, um era da minha mãe [risos].
A minha mãe é uma figura muito importante na minha vida, porque foi ela quem descobriu o curso de cinema na USP. Ela que me falou “por que você não vai fazer cinema? Ao invés de fazer… engenharia?”. Sabe quando você tá no 9º ano? Quando você tá entrando no ensino médio e já começa a ficar vendo [curso]? Tipo, eu estudei numa ETEC (Escola Técnica Estadual), você passa por um vestibular pra entrar na escola, então você já começa a ter contato com vestibular. Você já começa a antecipar coisa da faculdade, já começa a pensar o que você vai fazer, um curso técnico… Eu sou formado em eletrônica! E não tem nada a ver com o que eu gosto do audiovisual. Eu ia fazer engenharia, e a minha mãe falou “Eu vi a história de alguém que largou engenharia e foi fazer cinema. Por que você não faz cinema logo?” [risos] e eu fiquei, é verdade! Faz muitos anos que eu não consigo imaginar o que eu estaria fazendo se não fosse audiovisual. E sempre foi muito na pira de que, eu gosto muito de assistir, mas sempre tive a curiosidade de fazer. Hoje muito menos, mas quando eu via muito DVD, eu via muito making off. Eu tinha essa experiência de ir na locadora e ver todos os extras. A locadora chegou a dar o DVD do Quarteto Fantástico pra mim porque eu aluguei tantas vezes, e lá tinha making off do videoclipe da música principal.
E sobre a faculdade de cinema – como vocês descreveriam a experiência de estudar cinema lá na USP?
Isabel: A minha experiência na USP não é muito boa não, na real [risos]. É que o AV foi mudando, foi assentando as coisas. O curso da USP é muito focado em cinema. A gente só tem duas matérias de rádio, uma de televisão, então é muito tempo estudando cinema. Eu acredito que outras faculdades seja um pouco mais difuso porque entra no meio da comunicação, e esse negócio dos equipamentos é muito difícil. Acaba que fica uma coisa meio generalista, né? Comunicação e uma matéria de cinema, enfim. Tem várias grades ao longo do país. O audiovisual [na USP] é muito focado, […] mas não dá pra negar que ele é bem elitista. A adesão de cotas melhorou, mas tá bem aquém do que poderia ser.
Eu acho que esse processo de entender o cinema, como ele poderia fazer parte da minha vida, e como eu consigo trazer ele pro que eu preciso estudar de fato, foi um processo de muitos anos. Eu comecei o audiovisual bastante deslocada, tanto nas aulas quanto em relação às pessoas. Eu não me identificava tanto com as pessoas e eu fui lentamente encontrando meu espaço. E é isso, tô no meu sétimo ano [risos]. Mas hoje eu entendo meu lugar no mercado, que é bem massa, né? Que é o que importa [risos]. Porque a faculdade acaba, né? Você não gosta de ninguém na faculdade, uma hora vai acabar. Mas importante é o que você leva disso, e aí eu sinto que eu consegui trazer muita coisa. Trabalhando agora, dirigindo foto, eu consigo colocar em prática e entender o quanto que eu aprendi. Às vezes você não consegue uma cronologia em Humanas do quanto você aprendeu. Nada é muito exato. Parece que você não aprendeu nada, e eu nunca fui boa aluna. E agora, dirigindo foto, eu consigo pôr em prática e entender tudo que eu aprendi nos últimos anos.
Maria Clara: Eu ia comentar aqui que eu e Benja estamos no nosso terceiro ano. Pra mim foram três fases muito diferentes. Eu acho natural que o primeiro ano é o que você fica mais encantado. Eu gosto muito do curso, eu sou realmente muito apaixonada por tudo, mas o primeiro ano foi o primeiro contato, então a grade era mais perfeitinha, né? A gente não escolhia as matérias. Tinha tudo, tinha som, imagem, rádio, história, direção… E no primeiro contato você gosta de tudo, né? De montagem, produção… E pouco a pouco você vai afunilando e se entendendo mais, vendo o que você gosta mais e o que você não gosta tanto. O segundo ano foi presencial, então foi quase um segundo primeiro ano, só que totalmente diferente. E assim, pra mim particularmente, e isso tem mais a ver comigo do que com a universidade, foi muito complicado porque eu não sabia que eu ia sentir tanto a mudança de estado. Eu achei que eu ia chegar em São Paulo e seria tudo perfeito. Na verdade, foi tudo muito difícil. Então eu sinto que eu só tô vivendo meu segundo ano de verdade agora [risos].
Mas acho importante ressaltar o que a Bel falou. O curso é bem elitista. Isso é uma coisa que pesa muito ainda. Quando teve a adesão das cotas, alguns professores foram até contra. Então são coisas meio pesadas, chegar num lugar que nem todo mundo queria que você estivesse lá. Mas eu gosto muito, muito mesmo. O audiovisual é meio isolado do resto da ECA, é uma experiência meio engraçada em que a gente é realmente meio distante do resto da universidade. Eu particularmente gosto que o curso é muito mais focado em cinema porque eu tenho entrado muito em contato com o mercado desde o ano passado, e eu sinto que a universidade abre espaço pra gente fazer coisas que o mercado não permite e não valoriza. A universidade te dá um pouco mais de espaço pra “sonhar”, pra ser “autor”, o que o mercado brasileiro não permite tanto.
Benjamin: Talvez eu tenha a visão mais romântica daqui [risos]. Era um sonho muito antigo meu e da minha família, então realizar isso foi muito impactante… O curso tem vários problemas, rola muito esse embate com os professores, como o fato das cotas que a Clara comentou. No nosso ano pandêmico, a gente discutiu com professor quando tiveram falas assim durante a aula. O curso ser elitista também esbarra na quantidade de vagas que tem, no processo de vestibular. Não só o curso, como a USP, sabe? Tem cota, mas aí eles separam uma vaga pra PPI (Preto, pardo ou indígena). O que é uma nota de corte quando só existe uma vaga pra entrar? Como você só seleciona uma pessoa em um vestibular?
Mesmo a universidade tendo todo um desmonte, com cada vez menos professores – porque o nível tá caindo mesmo. Várias máterias estão deixando de ser oferecidas, matérias cruciais, de análise de filme, de legislação de mercado. Daí elas deixam de serem obrigatórias, o que faz com que elas fiquem anos sem serem oferecidas. Fora que os professores vão se aposentando – também tem isso, o corpo docente é muito velho – e não vem gente pra suprir. Rola uma sobrecarga, com um professor por área dando várias matérias, tanto na graduação quanto na pós.
Maria Clara: E sobre esse corpo docente velho, não existe uma renovação. A gente tem pouquíssimas professoras mulheres, poucos professores negros.
Benjamin: E isso é algo que a USP inteira enfrenta. A FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) teve uma grande paralisação ano passado, uma greve pesada, porque abriu um projeto de contratação para professores e [os alunos] exigiram que todos fossem negros. A FAU tem mais de 100 professores e não tem nenhum preto. Então, alguns elementos estão acima do nosso curso. Perpassam a USP, as universidades de São Paulo, e as universidades públicas no Brasil, em geral.
Mas falando sobre o curso: Ele é muito voltado pra cinema, o que eu gosto [risos]. E eu sinto que é um curso muito rico. Todo curso tem seus problemas e a gente sempre precisa ficar reclamando, mas quando eu olho assim, eu acho que é um curso excelente, fantástico mesmo. Você tem pessoas super capacitadas dando a parte teórica, gente que viveu o período que tá falando, gente que a pesquisa é referência em outras faculdades. Eu fiquei surpreso, por exemplo, na UFSCAR, os textos base da matéria de som foram escritos pelos nossos professores de som. É um curso que busca uma excelência, então por mais que ele tenha todos seus problemas, ele ensina muita coisa. A gente tem uma bagagem teórica muito boa, que é o que a Bel falou, quando a chega pra prática, você percebe que realmente aprendeu. Tipo, o que um filme de 1910 influencia hoje? E eu consigo entender o porquê. Fora que o curso é muito voltado pra prática, todo ano tem um grande exercício prático.
No primeiro ano tem um exercício de estúdio, no segundo ano a gente faz um curta, no terceiro tem documentário, e no quarto “teoricamente” é o TCC, que geralmente a galera faz em cinco anos. Então, sempre tem uma tarefa prática, e eles te estimulam a experimentar todas as áreas. Além de todas essas matérias e contatos, eles te dão muita prática e muita liberdade. Foi muito legal fazer os exercícios da nossa turma no ano passado. A galera fez direção, direção de foto, produção, arte, e mudando! A Clara dirigiu e fez arte. Eu dirigi, produzi, montei… Então, a gente tem muitas experiências, e experiências que eu só teria na faculdade: ter uma câmera boa, a oportunidade de contar nossas histórias, coisas que nós escrevemos e que botamos nossa visão de mundo. Eu sinto que estudar na USP é um privilégio, e eu me sinto muito feliz de poder usufruir. Eu gosto muito do curso, ele me proporciona coisas que eu nunca conseguiria alcançar se não fosse por ele. Para mim, é uma experiência muito gratificante.
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Teve um segundo vídeo!
Bom demais!