RECORTES ENTREVISTA: Acervo do Drive
A Recortes entrevista as responsáveis pela conta Acervo do Drive, principal canal de distribuição informal de cinema do Twitter.
NÃO SOMOS MEROS PIRATEIROS
Onde você estava quando o RARBG caiu? A notícia do encerramento de um dos maiores trackers de torrent da internet pegou o meio cinéfilo desprevenido no ano passado. O fim do portal e a crescente caça a sites de provedores de torrents tem provocado uma busca por alternativas ao compartilhamento digital de filmes, e uma das que mais tem se sobressaído é o uso de serviços de armazenamento digital, como o Google Drive.
Diferentemente do formato descentralizado dos torrents, os usuários dessas plataformas gerenciam arquivos de filme em suas contas pessoais, compartilhando filmes num formato mais agradável e simples de utilizar quando comparado ao uso de clientes de torrent como qBittorrent e Deluge. No escopo brasileiro, um dos canais mais populares que se aproveitam desse formato é o Acervo do Drive, projeto criado por suas administradoras Gab e Moon.
Desde sua criação em janeiro deste ano, a conta do Acervo do Drive já conquistou mais de 110 mil seguidores no Twitter. Sua comunidade é tão engajada no perfil que ela inspirou o design de uma ecobag para rivalizar a já tradicional bolsa azul marinho da MUBI. Além disso, o portal influenciou o surgimento de outros “acervos”, como o Clube do Drive e o Acervo de Animes, e chegou a ser peça de estudo em um artigo acadêmico1.
No dia 4 de janeiro de 2024, Pedro Chamberlain conversou com Gab e Moon para discutir a idealização do projeto, sua difusão, e o uso da pirataria como forma de distribuição e democratização do cinema.
Pedro Chamberlain: De onde veio a ideia do Acervo do Drive?
Moon: A Gabi costumava ter um drive de filmes, sabe? Eu não a seguia na época, mas já tinha visto alguns tweets sobre isso. Mas tudo mudou quando ela basicamente perdeu tudo e eu e outras pessoas nos oferecemos para ajudá-la a recuperar tudo, mesmo que aos poucos. A ideia do acervo partiu dela, mas isso foi uns bons meses depois da gente começar a conversar. Desde o início, nasceu uma amizade instantânea entre a gente.
Gab: Isso! Eu não tenho certeza de quando criei esse Drive, mas acho que foi em dezembro de 2021 – algo perto do fim desse ano. Era pra ser “coletivo”, onde as pessoas me pediam filmes e eu colocava eles lá, e foi assim durante uns bons meses. Não eram filmes tão variados como os que a gente posta hoje no Acervo, nem fazia tanto barulho, mas foi um bom aprendizado e passatempo. Além da Moon, conheci muita gente que hoje pra mim é super importante por causa desse Drive ou por consequência da queda dele, então foi algo que mudou tudo pra mim, realmente.
Esse drive era ilimitado, de uma conta de universidade. Um amigo que conheci no Reddit criou um acesso pra mim, e ele nem era estudante, foi alguma maracutaia que ele fez. Quando esse drive caiu, com mais de 1TB de arquivos e mais de 600 filmes, eu achei que tivesse sido por conta de um ataque hacker, mas depois fiquei sabendo que as pessoas de dentro dessa universidade descobriram e acabaram com a mamata. Fiquei frustrada, mas como muita gente veio me apoiar, incluindo a Moon, e ajudar a recuperar esses filmes, foi fácil lidar com essa perda toda. Daí surgiu a ideia do Acervo!
Nossa primeira postagem foi uma thread de filmes asiáticos, consigo destacar alguns: Cure (1997), One Day, You Will Reach the Sea (2022), Love Exposure (2008) e Funeral Parade of Roses (1969). Uma ótima forma de começar, né?
Com o tempo a gente foi pegando o jeito. Nas primeiras postagens, só colocávamos o nome do filme e ano. Depois começamos a colocar o gênero, e, por fim, a duração e nome do(a) diretor(a). A gente postava filmes mais atuais na época, mas não sei dizer ao certo quais tipos de filmes que nos impulsionaram tão rápido. Já em janeiro a gente fez threads (não eram coletâneas na época) do Studio Ghibli (com todos os filmes!), Wong Kar-wai... Se eu não me engano conseguimos mais de 10 mil seguidores em poucas semanas! Uma loucura mesmo, desconheço página de Drive que tenha crescido tão rápido.
Passados os meses a gente foi se acertando mais, postando filmes mais interessantes, conhecendo gente... Até vontade de fazer cinema me deu, com tantas descobertas que fui fazendo! Tem algumas coisas que me arrependo, mas, de resto, ter começado esse projeto me trouxe tanta coisa boa, tantas amizades, conhecimento, filmes que não fui mais a mesma pessoa depois de ter assistido, enfim!
E vocês seguem algum tipo de estrutura? As duas catam os filmes online? Tem alguém que se responsabiliza mais pela legendagem, por exemplo?
Moon: Bem, quanto a questão de baixar os filmes, essa é uma tarefa dividida entre a gente, costumamos aderir ao bom e velho torrent, mas às vezes temos outros meios para encontrar os filmes! A legendagem e sincronização é a Gabi quem se responsabiliza, às vezes ocorre de alguém se oferecer para ajudar a legendar e vice-versa.
Gab: Nós duas ficamos responsáveis de ir atrás dos filmes, mas eu fico pelas legendas – sincronia, tradução... Às vezes pedimos filmes que podem estar disponíveis em cópias de alta qualidade somente em sites privados pra amigos que tenham acesso. Sites que nesse mundinho são chamados de “trackers”. Eu tenho acesso à três desses, um específico de cinema asiático (Avistaz) e outros dois mais gerais (Makingoff, Movieparadise). Para esses três (e outros, como o Karagarga), você precisa de convite de alguém “de dentro” pra entrar, o que não é algo muito fácil de se conseguir [risos]. Mas, com o alcance do acervo, a gente chegou em muita gente com esses acessos e que nos ajudam sempre.
Eu bem queria comentar com vocês que fiquei encantado com alguns dos designs feitos para divulgar as coletâneas de diretores2.
Moon: São todos pensados e feitos com carinho pela nossa amiga designer @gnocchipessego!
Gab: Poxa, obrigada! Eu sempre me dedico à deixar o mais bonito possível pra que chame a atenção pra esses diretores. Às vezes a gente pede pra nossa amiga que a Moon mencionou criar, mas isso quando eu tô sem criatividade.
Sobre o processo de vocês, o que me deixa mais curioso é a parte da curadoria. Existe algum tipo de critério na seleção dos filmes/diretores?
Moon: Pior que nem tanto, mas no início a gente focava mais no que a galera pedia, sabe? Sem ver diretores e essas coisas. Com as coletâneas dá pra notar que a gente tem uma certa seletividade para escolher os próximos diretores, mas sempre visando trazer o que povo pede! Temos muito orgulho do nosso catálogo ser tão diversificado e com filmes para todos os gostos!
Gab: A gente escolhe à dedo os que achamos que merecem ser mais vistos, por vezes também com filmes mais difíceis de se achar ou que não estão em streaming, que é o caso das coletâneas da Maya Deren, Christian Petzold, Sang-soo, Kurosawa (!) e Stan Brakhage. Quanto mais a gente se aproxima de algo “profissional”, mais feliz eu fico. Gosto da ideia do acervo ser uma cinemateca virtual, com os filmes mais variados possíveis.
Sobre a curadoria, de uns tempos pra cá a a gente começou a pesquisar bastante. Vamos atrás da história do cinema de cada país, seus diretores, filmes esquecidos... Isso vale principalmente pro cinema asiático, que me é um dos mais interessantes e um dos que mais faltam legendas em português – até para filmes de cineastas importantes, como os do Nobuhiko Ōbayashi. Recentemente, nas minhas pesquisas, a gente descobriu e trouxe um curta japonês muito legal chamado Evil Heart (1986) que, sinceramente, só conheço uma pessoa que teria interesse em traduzir. Listas no Letterboxd também ajudam muito no processo de curadoria. Na real, talvez seja o melhor lugar pra descobrir essas pérolas. O Evil Heart, que citei anteriormente, e o Love Massacre (1981), filme do diretor Patrick Tam que também legendamos exclusivamente, eu descobri por essas listas, dentre outros filmes muito bons! Minha watchlist tá cheia deles pra trazer futuramente.
Confesso que a gente não vai mais atrás dos pedidos como antes, mas tento compensar isso indo atrás desses filmes. Essa falta de legendas é muito comum com filmes LGBT, africanos, norte-coreanos... Basicamente, tudo fora do eixo americano-europeu. A gente quer, quem sabe, criar uma equipe de tradução só pra trazer esses filmes. Já tentamos antes, mas acabou não dando certo. Quem sabe 2024 não traga boas novidades!
Nossa, sobre o Ōbayashi – eu acho que um dos meus maiores sonhos é assistir uma versão legendada de Legend of the Cat Monster (1983). Não sei se vão ser vocês que vão cumprir ele, mas eu seria eternamente grato.
Gab: Esse aí eu tô enrolando faz um tempo [risos], mas pode deixar que a gente vai trazer! Já tenho até baixado. Nessas pesquisas vai se criando uma bola de neve e eu vou me enfiando em mais e mais traduções de filmes, uns mais legais que os outros. E acaba que eu não termino nenhuma legenda, tenho problemas em focar em uma coisa só [risos]. Mas ando tentando corrigir isso.
No momento, queria citar três projetos pras pessoas ficarem ligadas: três longas do Ōbayashi, um deles sendo Casting Blossoms to the Sky (2012), e um longa da Kinuyo Tanaka, a segunda mulher a atuar como diretora no Japão, The Moon Has Risen (1955). Acho que tem mais coisa, mas não tô lembrada agora.
Você comentou de novidades agora pouco…. Me recordo de ver que vocês tinham interesse em fazer parceria com críticos, possivelmente criar “mostras” online. Um cineclube, talvez?
Gab: Quem sabe! Por enquanto, são só ideias pairando na minha mente, mas quero muito fazer algo do tipo. A gente já fez uma colaboração com a Raissa Ferreira, uma crítica incrível e uma ótima amiga nossa, na qual ela fez uma lista com filmes dirigidos por mulheres que mereciam ser mais reconhecidos. Filmes como Outrage (1950), da Ida Lupino, But I’m a Cheerleader (1999), Pariah (2011), The Watermelon Woman (1996), enfim.
Eu espero trabalhar com os críticos que nos seguem acerca de curadoria (de filmes queer, por exemplo), mais listas de recomendação como essa, talvez postagens incluindo críticas dos filmes que postamos como forma de recomendar e de chamar a atenção pro que postamos... Sempre que a gente fala um pouco mais sobre os filmes que a gente posta (contexto histórico, importância, etc), eles dão super certo, mas eu realmente não sou boa escrevendo esse tipo de coisa [risos]. Não sei como vai ser o desenrolar disso, mas a gente vai vendo conforme o tempo passa! É Janeiro ainda... Por enquanto estamos sossegadas.
E como vocês enxergam o papel do Acervo dentro da comunidade cinéfila online?
Moon: Eu sinto que o Acervo meio que despertou novamente o amor das pessoas pelo cinema, algo que talvez estivesse adormecido. Porque, de certa maneira, há como se perder o gosto pelo que amamos, sabe? Então dá pra notar como o Acervo foi essencial dentro dessa questão, e o surgir dele foi necessário para que as pessoas voltassem a consumir mais, largassem de lado os streamings, e alimentassem-se de conteúdo que agrega e gera conhecimento! Gere novas perspectivas e maneira de enxergar as coisas. Cinema é isso.
Não é querendo me gabar, sei que já existiam algumas páginas de drive, porém eram poucas… E outra, a maioria delas só focava em lançamentos recentes. Criar o Acervo foi incrível, porque depois dele surgiram mais páginas de drive e torrents também, e assim como nós, também diversificadas no conteúdo. Dá gosto de ver.
Gab: Eu espero que ele seja importante, e acho que seja. Mas não falo “acho” com papo de modéstia, é que não sei mesmo dizer [risos].
Eu vejo que a gente influenciou diversas pessoas e consigo contar uns quatro perfis que começaram a postar filmes no drive por nossa causa: Club do Drive, Drive de Alexandria, Drive Plano Sequência, e agora o Shin Filmes. Fico muito feliz vendo isso porque cada catálogo desses perfis complementam demais uns aos outros, principalmente o de Alexandria – que eu sinceramente acho mais variado do que o nosso – e quanto mais perfis fazendo esse trabalho, melhor. Talvez seja uma espécie de legado nosso.
Fico feliz também que a gente influencie tanto no cinema que as pessoas que nos seguem consomem. A gente recebe diversos comentários das pessoas dizendo que nossas postagens fizeram elas se apaixonarem e se interessarem mais por cinema, que pegaram gosto por filmes menos convencionais... E sei também que a gente influenciou algumas pessoas à traduzirem filmes mais desconhecidos. Um seguidor chegou recentemente e nos mandou um filme japonês, Cats on Park Avenue (1989), que eu tinha recém descoberto e queria traduzir.
Inclusive, um fenômeno legal: A gente fez um filme ganhar mais de 1000 espectadores no Letterboxd. Era um nacional de terror e comédia, uma paródia de filmes slasher. Pensar que a gente fez mil pessoas assistirem a um filme, mesmo que apenas por sua peculiaridade, me faz pensar no quão longe a gente chegou e pode chegar, e quantos filmes mais tiveram um impacto positivo nas pessoas que nos seguem. Muito doido pensar nisso, mesmo.
Andam dizendo bastante também que perfis de Drive + edits de filmes vão levantar o interesse das pessoas no cinema e têm um potencial enorme de divulgação, principalmente pro cinema nacional – e eu espero que seja verdade! Você deve ter visto a explosão dos edits do Lu (@scfimoon). Ele merece muito, mas eu mesma tô de cara com o quão longe eles estão chegando ultimamente. O edit de Bingo (2017) pegou mais de 10 milhões de visualizações em poucos dias3. Espero que esse seja só o início de um boom de interesse no nosso cinema, porque têm MUITA coisa boa aí. No nosso catálogo tá faltando bastante nacional (falha nossa), mas sem dúvidas vai ser um dos focos pra esse ano.
Eu ia comentar exatamente disso! Como vocês fazem parte desse mesmo espaço online acaba rolando uma retroalimentação entre os edits e com essas páginas de acervos. Acho impressionante porque é um movimento muito orgânico.
Gab: E meio que todo mundo se conhece ou se interage. O Lu mesmo é meu amigo, uma pessoa super querida e que nos ajudou enviando diversos filmes. Eu mesma sempre repasso links de filmes pra outras páginas, normalmente dos que a gente não vai postar (às vezes por ser um filme recém lançado), ou cópias em qualidade melhor do que as que eles postaram. Tô sempre checando isso essa comunidade de pirataria é super unida e super querida, e espero que de fato possa alavancar mais o nosso cinema. Acho que já está, na verdade, mas quero ver isso sendo estudado em TCCs!
O trabalho de vocês é sensacional. Entendo que ele é mais vulnerável por não ser descentralizado tal qual os trackers de torrent, como o Karagarga e o MakingOff, mas a interface do Google Drive acaba tornando o download dos filmes muito mais fácil.
Gab: Pois é, o torrent ainda é mais confiável e sempre digo pra galera aprender a usar. Querendo ou não, o povo gosta de moleza (eu inclusa). Não que o torrent seja moleza, mas o Drive é ainda mais. Você só aperta num link e pronto, precisa nem baixar, só assistir direto pelo drive não é tão seguro quanto, as coisas podem cair a qualquer momento, seja pela própria Google ou até por denúncias. Nunca aconteceu, mas sou paranóica, vai que…
E sendo honesta, a gente não tem backup de nada do que a gente postou, assim que possível quero ir atrás de salvar todo esse trampo de forma segura, especificamente num HD. Vai ser um senhor HD, mas é preciso. Se a gente perder isso eu não respondo por mim [risos]. Dito isso, pra quem estiver lendo, aprendam a baixar torrents! E semeiem!
Eu admito que me preocupa a falta de experiência da nova geração com torrents [risos]. Entendo que compreender como redes peer-to-peer funcionam pode não ser tão simples, mas...
Gab: Pois é! Eu já nasci sabendo dessas coisas por ter tido contato com o computador muito novinha, então pra mim baixar torrent é memória muscular. Em parte é culpa dessa falta de experiência é dos streamings, com a promessa de terem tudo num lugar só e de fácil acesso (mentira!), mas eu acho que a galera que não tem esse hábito é justamente por não ter computador, ser cronicamente online e consequentemente conhecer os drives. Dá pra baixar e seedar pelo celular também, mas aí tem a questão do armazenamento, né? Espero que a galera se toque mais disso, se realmente gostam de cinema, usar torrent é mais que obrigatório.
Moon: Isso me pega bastante também, às vezes me estresso lendo alguns comentários… Mas acontece.
E quais são os principais desafios pra se manter um drive público de filmes?
Gab: A principal dificuldade mesmo é o armazenamento. A Moon paga por 2 terabytes na conta dela, mas não é o suficiente. A gente tem que criar várias e várias contas Google pra colocar esses filmes em algum lugar, e cada conta no Drive fornece só 15GB. Como a gente sempre busca os filmes na maior qualidade possível, pelo menos em 720p, alguns acabam tendo arquivos de tamanho enormes, no mínimo de 4GB e com o maior que já baixei pro Acervo tendo 12GB. Mas vai muito além disso.
Claro que existem arquivos em alta qualidade menores que 4GB, mas a qualidade por vezes é um pouco pior e em trackers privados, que é onde pegamos a maioria dos filmes mais raros, os grandes acabam sendo os únicos disponíveis. Ou seja, o armazenamento do Drive vai de ralo rapidinho, e a gente não tá em condição de pagar pelo armazenamento. Muitos seguidores e amigos falam pra gente abrir uma rede de apoio para as pessoas doarem pra nos ajudar com isso. A ideia me deixa meio mal, mas vamos pensar sobre caso as coisas apertarem.
De resto, não sei se existem dificuldades de fato além do risco do perfil cair. A gente toma cuidado com os filmes que postamos, evitando filmes estadunidenses e nacionais muito recentes, e de resto é isso. Às vezes acaba sendo um pouco cansativo por sermos só nós duas pra fazer tudo, mas estamos vendo se rola de aumentar a equipe em alguma forma.
Uma curiosidade… Porque é algo que eu vejo com certa frequência no Twitter: Por que vocês acham que ainda existe certa resistência do público para assistir e discutir filmes que não sejam mainstream, mesmo com a existência de portais como o de vocês, que facilita tanto o acesso a obras mais raras ou de difícil acesso?
Moon: Porque as pessoas estão acostumadas com a "facilidade" que os streamings prometem propor, mas que no fim acabam por não cumprir visto que não possuem um catálogo variado, é algo limitado. Acho que, se você está acostumado a consumir o que vem fácil, fica difícil se deixar levar por filmes fora dessa bolha mainstream, são poucas pessoas que se arriscam. Acredito que isso vá mudando conforme o tempo passa porque ainda sim as pessoas estão familiarizadas com os conteúdos que já tem nos streamings, sabe? Nem todo mundo quer se "arriscar" a consumir uma obra independente, por exemplo. Às vezes chego a pensar que talvez também possa ser só preguiça, mas não sei.
Gab: Muita gente fala de anti-intelectualismo, mas eu sinceramente acho uma palhaçada. Você realmente se sente provocado pelo que um fã de filme de boneco diz?
Talvez seja eu que não me importe com isso, mas sei lá. Se a pessoa tem algo contra esse tipo de obra, azar o dela. Tá perdendo muita coisa. Mas acho que não é todo mundo que tenha esse tato pra esse tipo de arte também. Não é aquela besteira de “você não entende!", só tem obras que não pegam a gente. Gostos e gostos, mas sensibilidade, também. Um filme que muita gente fala bem é Persona (1966), que a Moon adora, e eu sinceramente não gosto. Reconheço seu valor e importância mas não me conectei ao filme. mas sei que com certeza vale uma revisita depois.
Essa atitude pode ser devido à influências (youtubers, por exemplo), falta de contato prévio com esse tipo de arte, muito pela escassez dessas obras em streamings, ou só ignorância. E é difícil combater ignorância porque normalmente é uma opção. Só acho feio desrespeitar a importância de certas obras, mas tenho preguiça de discutir em defesa. Discutir na internet com quem tem o pensamento contrário ao seu quase sempre é perca de tempo. Resumindo, só acho triste. Mas é uma opção que não vejo como combater, a não ser que a pessoa tenha uma mente mais aberta.
É inegável que o avanço da pirataria tem sido essencial para o acesso ao cinema “de arte” na América Latina, mas, eu fico curioso se vocês encaram o Acervo como um possível impasse ético com a indústria de cinema, em particular a nacional.
Gab: A gente tem muita sorte de ter nascido no Brasil, porque todos os países que conheço mundo afora tem uma restrição muito mais forte quanto à pirataria. Aqui, lendo o Artigo 184, você vê que só configura pirataria quando há intenção de lucro. Resumindo, você pode consumir à vontade.
Pirataria é, acima de tudo, preservação – mas também disseminação da arte. E a arte é para todo mundo. Pirataria deve ser encorajada para obras continuarem vivas e serem lembradas no futuro.
Não acho que exista ética na pirataria, e se existe, quem a pratica é quem faz sua própria ética. Eu particularmente tenho a minha, e a Moon também, mas especificamente para filmes nacionais: nós não postamos nada de 2020 pra cá sem a devida autorização de seu realizador, principalmente caso esteja em cartaz, e isso quando é possível ter contato. Só postamos caso não esteja em cartaz e não esteja em streaming algum, mas isso é bem raro e a gente pensa bastante antes de postar.
Alguém deve seguir o que a gente faz? Não! Só estou falando mesmo. Sei de alguns diretores que acompanham nosso trabalho e alguns deles já ofereceram seus filmes para serem postados. Mas, sem essa comunicação, a gente deixa de postar por respeito, mesmo. Não muito tempo atrás teve toda uma briga por conta de pirataria de Pedágio (2023) enquanto ainda estava em cartaz, e a gente não quer comprar uma briga dessa. Todos os pontos apresentados ali são válidos, mas nem tudo é preto e branco.
No nosso caso, sinceramente, não acho que a gente possa atrapalhar em nada. A gente já não posta nada que tá em cartaz, de qualquer forma. Uma pessoa que não tem condições de pagar um ingresso no momento não ia assistir de qualquer forma. Não vai e nem acho que deva se proibir de consumir essa mídia no momento em que ela ainda está em circulação. Agora, o que ela vai fazer, se ela vai divulgar essa obra ou consumir na dela, eu não sei. Cada um é cada um. Assim como cada artista tem sua visão, eu, como artista, adoraria ter minhas obras pirateadas, sinceramente. Mas sei que alguns ficam chateados. É a era digital, né. Se tu tem um nome, é inevitável que a pirataria possa acontecer. Se tu acha que te prejudica, daí é ver formas de como diminuí-la, mas já entra em questões mais burocráticas...
Mas vocês já tiveram algum tipo de problema com direitos autorais com algum realizador brasileiro?
Gab: Felizmente nenhum até o momento! Justamente por esse cuidado e respeito que temos com filmes nacionais. Como eu disse, alguns diretores já mandaram seus filmes ou deram permissão para serem publicados no Acervo. Consigo contar dois ou três diretores. Eles mesmos que chegaram na gente.
Acho que com filmes antes de 2010 não precisamos ter todo esse cuidado, alguns diretores sequer estão no Twitter, talvez não ligariam ou podem já ter até falecido – e é super importante disseminar os filmes dessa época pra baixo, principalmente as chanchadas. Só que, como eu disse, os nacionais estão em falta no catálogo, tem pouco mais de 100, precisamos ir atrás com urgência [risos].
Sobre Pedágio, vocês devem ter acompanhado como essa discussão resultou no fechamento recente do "A Sétima Arte”, que seguia uma proposta similar a de vocês só que no formato de fóruns do Facebook. O que me pega é que o Brasil de fato tem uma rede de exibição extremamente deficitária. Imagino que seja frustrante ver seu filme na internet logo na primeira semana do lançamento, mas…
Gab: Eu tava no “Sétima Arte” e vi o desenrolar todo disso e, pois é, há pontos de ambos os lados que dá pra entender e se debater – por mais difícil que seja pra alguns usuários – com o devido respeito e atenção que se merece. Faltam salas de cinema, falta dinheiro, falta investimento na arte, falta tudo. Cultura, cara! O ser humano precisa disso. Eu mesma fui pela primeira vez ao cinema não faz nem um mês. Se eu pude ser tocada pela arte – cinema, música - foi por causa da pirataria. E outras pessoas também. é lutar pra que as coisas se complementem, sabe? Se complementem porque enfim, duvido que a pirataria seja combatida a ponto de não ser mais necessária. Quem consome se importa mais do quem produz.
A impressão que eu tenho é de que quem gosta de cinema vai buscar a chance de assistir os filmes no cinema independente do vazamento. O próprio filme novo do Petzold, Afire (2023), já tinha vazado a tempos na internet. Chegou a Mostra de SP e a sessão teve ingressos esgotados de cara. Eu acredito que assistir um filme pelo computador não lhe entrega tudo que você é capaz de absorver dele. E não digo nem sobre a questão do tamanho da tela, mas do próprio ambiente que o envolta, onde você consegue se conectar mais profundamente com a imagem.
Gab: É isso. Como alguém que teve essa experiência recentemente, com clássicos como The Thing (1982), eu posso dizer: Nada se compara a assistir um filme no cinema, sério. Passei toda a minha vida assistindo filmes no celular e computador e, putz, o que eu não daria pra assistir alguns dos meus favoritos num telão. Vi que no Rio vai passar Hausu (1977) no Estação NET, e esses tempos passou por aqui no CINUSP e… Meu Deus, eu faria absurdos pra poder assistir esse filme no telão, em 4K e o escambau.
Enfim, só ter consciência de que não é todo mundo que têm a oportunidade, às vezes por morar longe dos centros ou fora do eixo SP-RJ. E mesmo estando aqui ainda é possível acabar perdendo, às vezes por serem sessões únicas... muitas variáveis. Daí, o que sobra, né?
Obrigado por ler esta entrevista da Recortes de Película!
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Para mais informações, conferir o texto “Cibercinefilia, cooperação e circulação informal de filmes na internet como meio de acesso e preservação de obras cinematográficas”, TCC de graduação em Cinema feito por Caio Augusto pela UFS.
Alguns exemplos: Akira Kurosawa, Hong Sang-soo, Maya Deren, Stan Brakhage.
No momento da publicação dessa entrevista, o vídeo se encontra com mais de 15 milhões de visualizações.
Acredito que o que fazem no Drive também é um estímulo até para uma redescoberta dos torrents já que retira muitos da zona de conforto dos streamings e estimula a busca por obras novas. O que não há nos drives muito provavelmente estará nos torrents; é nesse fluxo que vejo uma ótima comunicação entre ambos. Ótima entrevista e virei fã das administradoras do Drive.