RECORTES CRITICA: Sofia Foi (2023)
Crítica do filme vencedor do prêmio de Melhor Diretor Estreante no Festival de Marseille 2023, por Igor Nolasco.
Uma das sequências mais expressivas de Sofia Foi se dá logo nos primeiros minutos de filme (que enquanto longa é curtíssimo, tendo pouco mais de sessenta minutos de duração). Ela começa com a personagem titular na penumbra do quarto onde vive, pouco após ter recebido uma mensagem da pessoa que lhe aluga o cômodo dizendo que este deve ser desocupado em breve. Tendo sido essencialmente despejada, a jovem maneja uma faca de pão enquanto, ao fundo, ouvem-se falas de um episódio dublado do desenho animado Bob Esponja Calça-Quadrada. Em meio a uma série de sobreposições imagéticas, vemos o que parece ser, num primeiro momento, um processo de auto-mutilação. Posteriormente, somos transportados a um campus da Universidade de São Paulo, no qual a Sofia chega munida de seus pertences, entre os quais um kit de tatuadora. Ao longo das sequências seguintes, a acompanhamos tatuando uma série de clientes no ambiente universitário. É aí que entendemos: não se tratava de auto-mutilação; a personagem estava tatuando a si mesma por meio do método handpoke. Se o espectador pode, a partir daí, sentir-se desvendando um joguete intencional do filme, isso não anula a pulsão de morte existente na sequência que descrevemos aqui. Essa pulsão orienta toda a minutagem de Sofia foi, mesmo quando não parece fazê-lo, até seu inevitável desfecho.
Sofia Tomic, protagonista/co-roteirista/operadora de boom/diretora de arte no enxuto set de filmagem orquestrado por Pedro Geraldo, diretore/fotógrafe/co-montadore/operadore de som, esteve presente no debate que sucedeu a sessão de Sofia Foi organizada pelo Cine Arte UFF na última segunda-feira. Respondendo a uma pergunta do público, comentou que a fita fora quase toda rodada há seis anos, com acréscimo de uma sequência gravada em 2022 na montagem final. No circuito de mostras e festivais, o longa circulou pela Europa entre 2023 e 2024 e, por aqui, aportou nas últimas edições da Mostra Tiradentes e do Festival Ecrã. Para nós, espectadores, talvez a maior surpresa seja vê-lo sendo exibido em circuito comercial(!), por meio da distribuição da Vitrine Filmes e da iniciativa Sessão Vitrine Petrobrás. É difícil imaginar um filme como Sofia Foi em cartaz num multiplex, ao lado do novo blockbuster de super-heróis e de alguma continuação recauchutada de franquia dos anos 1980. Mas, acreditem se quiserem, isso se concretizou (pelo menos, em algumas das redes que abrem suas portas ao “circuito arthouse”).
Se nos parece necessário pontuar o quanto Sofia Foi parece uma anomalia em meio ao parque exibidor, isso se dá pois ele é, em todos os aspectos, algo como um típico filme de festivais, daqueles que desaparecem após o fim de tal ciclo: rodado inteiramente em locação, com escopo pequeno e tom intimista. Com boa parte de suas sequências tendo sido gravadas na Universidade de São Paulo, Pedro Geraldo (estreante em direção para longa-metragem, mas já experiente com fotografia) em muito se aproveita da iluminação natural e dos pontos fixos de luz elétrica para criar composições que valorizam a penumbra sobre a qual falamos há pouco, com internas que por vezes evocam o estilo do português Pedro Costa (referência citada explicitamente por Tomic no debate do Cine Arte UFF, ainda assim perceptível para a parcela do público com olhos mais treinados, à revelia de menções explícitas) e externas diurnas, nos ambientes arborizados e por vezes idílicos do campus, que chegam a lembrar o parque de A Mulher do Aviador, do francês Éric Rohmer. Luz e cor no filme não são trabalhados de maneira “naturalista” (palavra maldita!) ou desleixada, muito pelo contrário; em meio às limitações de um set enxuto, Geraldo (enquanto diretore/fotógrafe) e todo o trabalho de pós da fita parecem tratar o visual com muito esmero. É um longa que pode, para todos os efeitos, ser considerado “simples”, mas definitivamente não foi feito de qualquer jeito. Não há nada de amadorístico em Sofia Foi.
Trata-se daquele tipo de filme no qual, ainda que haja certo rigor narrativo, cada sequência funciona como um pequeno universo autocontido (e de Sganzerla a Apichatpong, uma porção de bons cineastas radicalmente diferentes entre si parece encontrar seu método nessa logística; talvez a maneira como Sofia Foi organiza suas sequências esteja mais próxima deste do que daquele). Geraldo/Tomic (impossível não considerá-la coautora em alguma medida) curtem trabalhar a temporalidade dos planos, construir atmosfera, se entregar por vezes ao improviso e ao quasidocumental (o filme, pelo que consta, teria surgido enquanto registro documental antes de se enveredar pela ficção). A ambientação uspiana e uma primeira impressão sobre a fita podem afastá-la de um público que não se interesse por paulistanismos, e no entanto ela vai muito além desse aparente lugar-comum. O campus, as festas universitárias, a personagem deslocada e suas interações com figuras que vão surgindo por seu caminho são, todos, elementos que reverberam de forma bem universal. Há até algo como um movimento crítico em relação a esse devir-paulistano estereotípico: em dado momento, temos um diálogo que ensaia certo comentário sobre recorte de raça e classe, que acaba descambando em um desfecho inesperado e um tanto humorístico — os lampejos de humor em Sofia Foi, que é como um todo uma obra melancólica, são poucos, mas bem posicionados (e bem vindos); talvez não sejam sempre intencionais.
Em todo seu minimalismo estético que flutua entre o belo, o prosaico e eventualmente até o assustador (como Geraldo utiliza bem a USP, sobretudo nas noturnas!), tematicamente Sofia Foi acaba, por fim, sendo guiado pela pulsão de morte sobre a qual nos debruçamos ao início dessas linhas; pulsão que se faz presente desde o título da obra: este não diz respeito à ida a algum lugar (à USP?) ou à busca por algum objetivo (uma jornada de autodescobrimento após ser despejada?); versa, na verdade, sobre a materialidade da vida: Sofia Foi porque não é mais, porque expirou e porque talvez já estivesse marcada para morrer desde os créditos de abertura do longa. Isso pode ser encarado como um jogo de palavras, da mesma forma como a sequência da tatuagem handpoke que serve como dublê para automutilação pode ser lida como um jogo de imagens. O que une a palavra e a sequência supracitadas é, mesmo, essa inevitabilidade da morte da personagem titular, que a princípio pode passar despercebida a olhos menos atentos.
É uma obra que lida, mesmo, com a morte de forma pouco discursiva e, num geral, não-demagógica. Mais do que explorar ou discutir os motivos que levaram a vida da protagonista a descambar para os eventos captados pela narrativa, que eventualmente desaguariam em seu falecimento (literalmente, uma vez que este se dá nas arraias de um riacho onde os universitários praticam a canoagem), Sofia foi parece mais interessado em ser um registro desses últimos instantes. Boa parte de sua duração é ambientada ao longo de um dia e uma noite. Acompanhamos as horas finais de Sofia, tornamos-nos cúmplice de suas angústias que por vezes transbordam por através de um jeito calado e introspectivo, seguimos suas desventuras e, ainda que sintamos o destino à espreita, somos tomados de surpresa por seu repentino e misterioso fim.
Tendo sua passagem pelo parque exibidor marcada enquanto um momento verdadeiramente excepcional, Sofia foi é um pequeno e belo filme. Talvez não seja uma das produções brasileiras mais marcantes dos últimos anos (isso, só o tempo dirá), mas certamente causa uma impressão e é, a bem verdade, diferente mesmo de outros expoentes dos modos de produção/distribuição tidos como “filme universitário” (não é um, apesar de ser ambientado na USP) ou “filme de festival” (por ter conseguido ultrapassar essas barreiras mercadológicas). Por aqui, parece que conseguiu ganhar alguma tração no boca-a-boca — o que, para o cinema brasileiro, é sempre um grande negócio, e ajuda nossas fitas de caráter mais independente a perdurarem em nossa memória espectatorial coletiva.
SOFIA FOI, dir. Pedro Geraldo.
Sinopse: Sofia, forçada a sair do apartamento em que vivia, fica à deriva nos espaços da Universidade de São Paulo.
Duração: 103 minutos. Assista ao trailer.
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