RECORTES CRITICA: Rivais (2024)
Crítica do novo filme do diretor italiano Luca Guadagnino, por Igor Nolasco.
O suor dos corpos, a respiração arfante, o físico se exaurindo, o clima de competitividade, a disputa pelo poder, a tensão crescente ante a proximidade do fim: qualquer cineasta interessado pelo potencial erótico do esporte teria uma matéria prima mais do que farta com a qual trabalhar. Luca Guadagnino, que já explorou sensualidade, sexo e sexualidade (são coisas diferentes, frisemos) de formas tão distintas em seus trabalhos anteriores, parte desses paralelos entre jogos desportivos e jogos sexuais no desenvolvimento de Rivais, seu novo longa, que chegou ao circuito comercial brasileiro na última semana.
Seus protagonistas – três atletas inseridos no universo do tênis profissional norte-americano, sendo dois homens e uma mulher – estão num eterno bate-volta em meio a essas disputas. O pretenso triângulo amoroso, onde relacionamentos são intercambiados e a rivalidade entre os dois rapazes, dentro e fora das quadras, abre margem para o florescimento de outros tipos de te(n)são, foge do básico ao abordar esse tipo de dinâmica para além dos limites impostos pela banalidade heteronormativa (o que, tendo em conta o cinema de Guadagnino num geral, já era de se esperar – mas não deixa de ser digno de nota).
E como é gratificante assistir a um cineasta que trabalha essa química entre as personagens tão bem no cinema norte-americano contemporâneo! Há pouco mais de trinta anos, num passado que parece cada vez mais distante, tínhamos autores como Paul Verhoeven fazendo obras com grande orçamento e estrelas do calibre de Michael Douglas e Sharon Stone, inteiramente trabalhadas com base no elemento psico-sexual. Que o blockbuster atual é, quase sempre, necessariamente pudico, isso todo mundo sabe – a maior parte dos produtos hollywoodianos que nos chegam pelo circuito rende-se cada vez mais à insipidez e ao decoro exigidos pelos códigos de moralidade de grandes filões do mercado internacional. É, portanto, reconfortante adentrar a sessão de um multiplex e descobrir que ainda existem, entre nós, diretores que ignoram isso, mostrando-se dispostos a rodar um longa com uma atriz estrelar e que é calcado de forma inconfessa na provocação e na efervescência dos sentimentos e dos desejos compartilhados entre o trio. Não que Guadagnino seja um cineasta do quilate de um Verhoeven – e nem Zendaya uma atriz com igual nível de expressividade e versatilidade de uma Sharon Stone (ao menos, até o presente momento) – mas, de todo modo, Rivais não deixa de ser um respiro nesse sentido. E é, para todos os efeitos, um dos filmes mais estimulantes que chegam ao circuitão em muito tempo.
Falemos sobre Zendaya – talvez seja esse o seu primeiro papel em cinema onde ela de fato mostra ao que veio, e vale reiterar: Zendaya é uma estrela. Sua atitude despojada e cool, sua fúria contida em sua expressão quase sempre fechada e por vezes blasé, tudo isso cai como uma luva para a personagem Tashi, inicialmente a mais promissora dos três tenistas, que eventualmente deixa de jogar em decorrência de um acidente na quadra que a limita, em rendimento, para sempre. Seus confrontos com o Patrick vivido por Josh O’Connor estão entre o que há de melhor no conjunto. Josh O’Connor, aliás: que revelação! Apesar de já ter uma carreira relativamente longa, apenas agora, em 2024, o ator conseguiu voltar todas as atenções para si: enquanto escrevemos, ele está em cartaz não apenas com Rivais, como também com La Chimera, elogiado longa de Alice Rohrwacher que está sendo exibido pelo circuito “de arte”. Aqui ele demonstra um carisma cafajeste natural, que em outros tempos era de praxe entre ícones como Bogart, Belmondo ou Jece Valadão, ao mesmo tempo em que encarna de forma palpável e genuína as angústias de um tenista decadente, relegado ao segundo escalão das competições profissionais. Por mais que Mike Faist também esteja muito bem (e quem não o viu na refilmagem de Amor, Sublime Amor dirigida pelo Spielberg deveria largar o que está fazendo agora e ir assisti-lo imediatamente), seu personagem, Art, é inevitavelmente o menos interessante entre os protagonistas, por servir muito mais como “escada” para os papéis de O’Connor e Zendaya. Mesmo Tashi enfrenta os dilemas morais que eventualmente aparecem de forma muito mais rica, do ponto de vista dramatúrgico. Art é o pai de família certinho, o atleta bem-sucedido que está em baixa por causa de uma lesão, com vida ajustada e sucesso financeiro assegurado. Patrick é o tipo de personagem muito mais atrativo para qualquer espectador: é falastrão, atraente, underdog1 e uma espécie de “vilão” no plano presente, no qual Art e Tashi estão casados.
A estrutura elíptica, de um vai-volta ao longo de um período de 13 anos na vida de suas personagens, organiza o filme em torno da grande rematch2 entre Patrick e Art, agora treinado por Tashi. Se é na juventude que essas personagens irão se engalfinhar e entregar-se umas às outras, com os passos incertos próprios à idade e a explosão do desejo algo contida (Rivais é muito mais uma obra da provocação do que da consumação, o que funciona muito bem para os propósitos de Guadagnino), com sabor de novidade, é conforme a cronologia avança que vemos a real explosão: tudo o que está no peito de Tashi, Patrick e Art irrompe em erupção, seja no jogo ou fora dele.
Apontar os paralelos entre a quadra e a cama é não mais do que uma constatação primária, mas incontornável, uma vez que isso acaba sendo um ponto de convergência para as tensões elaboradas ao longo da projeção. Ainda que Guadagnino aparentemente não seja um grande fã de tênis3, é na grande partida que ele mais parece se divertir; é nela que o filme mais se solta em matéria de linguagem, com a câmera por vezes assumindo pontos de vista bem livres na medida em que a conclusão do último set do jogo se aproxima (e o desfecho, como não poderia deixar de ser, é apoteótico); os movimentos, frenéticos, são sempre embalados pela trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross, cuja atmosfera house contrasta de maneira curiosa com o caráter ensolarado e diurno do jogo de tênis, precedido por noites tempestuosas (literal e figurativamente) nas quais a relação entre as personagens chega em ponto de ebulição.
É um tanto difícil qualificar Rivais. Possui um senso de humor mais forte do que os trabalhos anteriores do diretor, que mostra-se presente inclusive na decupagem de certas sequências. É um filme tão maximalista quanto a refilmagem de Suspiria assinada por Guadagnino, porém em outros aspectos, com outros processos. É um trabalho intensamente erótico que mesmo assim não perde a elegância: o longa nunca “entrega o ouro”, por assim dizer; deixa o espectador sempre querendo mais, entende o poder da sugestão. Guadagnino é um dos cineastas que melhor entende a sensualidade em Hollywood hoje (e como filma bem seus atores!), e sabe se utilizar dela com um tino comercial que ultrapassa as barreiras do “filme de arte” e dos festivais e premiações. Quando pensado extra-contextualmente, um filme como Rivais, em cartaz nas salas multiplex do Brasil contemporâneo, parece até uma espécie de anomalia. Uma anomalia deliciosa.
RIVAIS (2024), dir. Luca Guadagnino [trailer].
Sinopse: A treinadora e ex-tenista Tashi Duncan é casada com Art, um multicampeão de tênis que enfrenta uma fase ruim na carreira. Para reenergizar o marido, Tashi arquiteta uma estratégia que toma um rumo surpreendente quando ele precisa enfrentar Patrick, seu ex-namorado e ex-melhor amigo de Art.
Duração: 131 minutos.
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Termo anglófono utilizado para designar o arquétipo do personagem que vem de baixo e supera as adversidades, geralmente precisando contornar a pobreza e / ou uma série de condições difíceis e dramas pessoais (Rocky Balboa, etc).
Revanche esportiva.
Em entrevista a David Jenkins, do portal Little White Lies, o diretor afirma achar partidas de tênis “chatas”.
eu entendi