RECORTES CRITICA: Os Rejeitados (2023)
Crítica da comédia indicada a categoria de Melhor Filme no Oscar 2024, por Igor Nolasco.
A partir do momento em que o cinema foi se desenvolvendo enquanto expressão artística, e seus artífices passaram a voltar-se com mais afinco para tipos de narrativa anteriormente desenvolvidos pela literatura ou pelo teatro, o conceito de “romance de formação” passou a ser gradualmente adaptado àquela nova linguagem. Se, nas letras, foi a Europa o maior manancial para o desenvolvimento de tal “subgênero”, se assim podemos chamá-lo, em matéria de cinema foi na indústria norte-americana que o filme de formação encontraram um dos espaços mais propícios para seu florescimento. São, de fato, abundantes os exemplos de filmes de formação, de qualidade variável, que graças (majoritariamente) ao cativante apelo sentimental de suas tramas tornaram-se sucessos de público, habitués de premiações e marcas incontornáveis na história do cinemão hollywoodiano.
O novo trabalho de Alexander Payne, Os Rejeitados, se enquadra nesse perfil narrativo, é claro, mas o faz sob uma perspectiva particular que é estruturalmente criativa e visualmente interessante. Falemos, a princípio, sobre o componente estético: trata-se de um dos poucos filmes de maior visibilidade no cinema norte-americano dos últimos anos que parece, verdadeiramente, saído de um guarda-roupa antigo, daqueles de jacarandá, com ornamentos e puxadores trabalhados no rococó. Lembro-me de ter feito essa analogia uns dois anos atrás, quando assisti à refilmagem de Amor, Sublime Amor dirigida por Spielberg, e recupero-a agora pois essas palavras caem como uma luva para o longa de Payne. As cartelas iniciais, estilizadas à moda dos anos 1970 para casar com o período no qual a história é ambientada, podem parecer um mau sinal: na tentativa de evocar uma outra época, cineastas de talentos mais limitados já se utilizaram desses e outros artifícios de forma que poucas vezes vai além do derivativo na construção de suas ambientações – de cabeça, podemos citar Todd Phillips, por exemplo. Os Rejeitados, felizmente, aproxima-se muito mais do supracitado Spielberg na maneira como trabalha decupagem, composições e mesmo montagem (com suas simplórias, porém efetivas – e algo belas – transições em fade). É, para todos os efeitos, um filme que se passa em 1970 e é filmado como então se filmava – e o faz sem qualquer camada de cinismo ou de imitação canhestra.
Nesse sentido, Payne é ajudado em muito por dois fatores: 1) o tradicional internato na Nova Inglaterra que serve como principal cenário para o filme; 2) o physique du rôle de seus atores principais, que integra-se sem dificuldade à atmosfera setentista. Paul Giamatti, Dominic Sessa e Da’Vine Joy Randolph formam um trio de protagonistas balanceado, onde cada um possui arco narrativo próprio desenvolvido com algum nível de profundidade, ainda que o foco maior incontornavelmente penda para a relação professor-aluno entre os personagens de Giamatti e Sessa.
Randolph é Mary Lamb, cozinheira-chefe do colégio interno de Barton. Uma das três pessoas que se vêem confinadas no local durante a maior parte do recesso de fim de ano, ela sofre com a perda de seu filho, estudante bolsista da instituição que falecera pouco antes dos eventos narrados pela trama, lutando na guerra do Vietnã. Ao traçar um panorama da mãe lidando com o luto, Payne e seu roteirista David Hemingson fazem um dos diversos comentários sobre classe social que permeiam todo o texto: o filho de Mary é descrito como o único aluno da escola, frequentada majoritariamente pelos rebentos de famílias ricas e influentes, a ter sido enviado para o front do Vietnã. “Os garotos de Barton não vão para a guerra”, é dito, em dado momento. “Exceto o filho de Mary Lamb”.
Sessa, no papel do jovem Angus Tully, vive um jovem secundarista que tira boas notas, mas está alguns anos letivos atrasado graças a sucessivas expulsões causadas por seu comportamento errático e explosivo, reflexo (como descobre o espectador, na medida em que a projeção progride) de um ambiente familiar conturbado. Em sua estreia como ator em longa-metragem, entrega o papel com uma naturalidade genuína e com o peso dramático que esse tipo de personagem exige nos confrontos mais emotivos com o professor ou com seus pais. É oportuno ressaltar, mais uma vez, o porte físico assombrosamente setentista de Sessa, esguio e em tudo distante do zeitgeist do embelezamento cirúrgico / estético de nosso tempo (nesse sentido, ele chega até mesmo a destoar dos atores que interpretam os colegas de Tully no internato; esses, sim, parecem adolescentes que sabem o que é o Instagram). Largado em Barton durante o recesso por sua mãe e padrasto, que almejam privacidade para consumar uma lua-de-mel, Angus é inicialmente um dos cinco estudantes radicados em Barton durante a última semana do ano, até que os outros quatro eventualmente debandam e ele se vê sozinho com Mary e Paul Hunham, professor designado para a supervisão dos alunos deixados na instituição por seus pais.
Mesmo que, analisando de forma objetiva, Os Rejeitados seja um filme de formação sobre Tully, o grande destaque do longa é (e não poderia deixar de ser) o Hunham vivido por Giamatti. Distinto character actor1, que abrilhanta tantas produções medianas de Hollywood com sua presença mesmo nos papéis mais unidimensionais, ele encontra aqui o que já é um dos personagens mais emblemáticos de sua carreira. Seu Hunham é um professor que leciona História Antiga com disciplina draconiana, reprovando alunos mesmo que estes sejam filhos das famílias mais influentes do país. Incessantemente arrotando erudição, sua rigidez, postura pedante e falta de traquejo social, somados ao alcoolismo (durante todo o filme, bebe doses e mais doses do bourbon Jim Beam como se fosse água) e ao mau-cheiro causado por uma intratável hipersudorese, o tornam persona non grata entre docentes e estudantes. A cereja do bolo na caracterização do professor está em um olho estrábico (que Giamatti não possui na vida real), inicialmente colocado como desconcertante e objeto de deboche pelos detratores de Hunham, mas que mais adiante faz toda a diferença nos momentos em que o personagem mostra-se explosivo (quando Giamatti entrega expressões deliciosamente cartunescas) e mesmo quando abre-se, expondo suas vulnerabilidades, na composição de um semblante dócil.
Payne enfoca o trio principal aprendendo a lidar com seus próprios problemas enquanto quebra as barreiras iniciais que torna complicada a convivência na Barton deserta. Hunham e Tully são pessoas particularmente difíceis, cada um à sua maneira, e o laço desenvolvido entre eles é o coração afetivo de Os Rejeitados. Mary tem sua trajetória (em dado momento, visita uma irmã grávida e se reconecta com sua família, recebendo a chegada do sobrinho de braços abertos e, através disso, encontrando uma forma de suavizar sua própria dor), mas a ênfase maior, ao fim da projeção, está no fato de que nem professor nem aluno são os mesmos após partilharem genuína cumplicidade durante aquele período.
Uma das felizes surpresas dessa temporada de premiações, Os Rejeitados é um filme “à moda antiga”, uma bela fábula de Natal, um legítimo coming-of-age, um inegável veículo para a performance de Giamatti e uma ode às significativas relações entre mestre e pupilo, que pode vir a evocar memórias doces ou agridoces naquele que já a viveram, de um lado ou de outro.
OS REJEITADOS (2023), dir. Alexander Payne [trailer].
Sinopse: Paul Hunham, professor num internato do interior da Nova Inglaterra, é encarregado de supervisionar Angus, um aluno rebelde incapaz de voltar para casa no Natal.
Duração: 133 minutos.
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“Character actor” é um termo anglófono utilizado para designar "um ator conhecido por interpretar papéis menores, interessantes e por vezes humorísticos em peças, filmes, etc, em detrimento de serem escalados para os papéis de protagonismo”, que por vezes “tem um dom para mimetizar sotaques e definir sua personalidade através de uns poucos gestos significativos”. Definição do Dicionário Cambridge, livremente traduzida do inglês.
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Parabéns ao Conexões e ao Pedro por trazerem esta fantástica resenha de Igor Nolasco. O mais interessante é que assisti ao filme antes de ler a resenha e gostei muito. Saboreei a resenha do início ao fim. Parabéns!