RECORTES CRITICA: O Mal Não Existe (2023)
Crítica do vencedor do Grande Prêmio do Júri da 80ª edição do Festival de Veneza, por Igor Nolasco.
O mal é aquilo que não compreendemos. Aquilo que surge subitamente e nos pega desprevenidos, sem ataque e sem defesa. Aquilo que pode mostrar-se de forma clara ou ocultar-se por debaixo das aparências, da cortesia e polidez seus emissários ou de uma fachada insuspeita. Pensamentos como esses podem circular pela mente do espectador durante e depois da sessão de O Mal Não Existe, o mais novo longa de Ryūsuke Hamaguchi, cineasta japonês que se tornou um nome de projeção internacional a partir de seus últimos filmes – sobretudo Drive My Car (2021). Lançada originalmente em 2023, a última empreitada de Hamaguchi só foi chegar ao circuito exibidor brasileiro há pouco, em julho de 2024.
A narrativa é centrada em Takumi, espécie de faz-tudo de um pequeno vilarejo incrustado entre as florestas de uma região montanhosa. Ele vive isolado em uma cabana nas imediações da cidade, porém escondida no meio da mata. Acompanhamos seus dias e noites a princípio pacatos, que consistem majoritariamente em fazer pequenos serviços, interagir com os outros habitantes de sua comunidade e cortar lenha numa clareira para aquecer sua casa durante o inverno. Mora com sua filha Hana, órfã de mãe, que está sempre indo e voltando da escola. De início, os expedientes cotidianos de Takumi podem lembrar um filme como o recente Dias Perfeitos (2023), de Wim Wenders, que almejam fazer uma crônica laboral agridoce centrada num trabalhador que serve como avatar para o homem comum e de quem brotam lampejos do extraordinário. O Mal Não Existe, no entanto, não demora para mostrar que seu lance é outro – não apenas por, atualmente, Hamaguchi ser um cineasta muito mais interessante do que Wenders, mas porque sua própria abordagem na maneira como retrata a labuta de seu protagonista é completamente diferente. Takumi é sempre um personagem muito difícil de se ler; durante a maior parte da minutagem do filme, fala apenas quando necessário ou quando objeto de alguma pergunta ou pedido. Sua relação com o trabalho manual não é poetizada; se tanto, chega a sê-lo por personagens cosmopolitas que, invejando seu estilo de vida “rústico”, tentam canhestramente cortar a lenha como ele (o lenhador, esse ícone da masculinidade estereotípica, cujo vigor e precisão parecem inalcançáveis para aqueles que enxergam de fora e tentam emulá-lo). Em uma série de momentos, o vemos subir e descer o machado contra os tocos de madeira com concentração absoluta e num silêncio sepulcral – silêncio esse que é um dos grandes artifícios de Hamaguchi no longa. O Mal Não Existe, quando quer, é um filme extremamente silencioso, e mesmo sua (ótima e expressiva) trilha sonora é por vezes interrompida inadvertidamente pelo silêncio, com cortes bruscos e secos no som que nem sempre dialogam, à primeira vista, com a imagem – e que indicam, evidentemente, que algo está acontecendo nas entrelinhas.
As coisas andam relativamente normais na vida de Takumi, até que ele e os moradores do vilarejo próximo são surpreendidos pela chegada de uma empresa que visa instaurar na área uma espécie de camping gentrificado – o “glamping” – para turistas, cuja construção exigiria uma série de mudanças estruturais no ambiente, incluindo a escavação de uma fossa de esgoto que iria poluir os rios imaculados daquele perímetro. Representantes da companhia responsável pelo projeto são enviados para dar explicações aos habitantes do povoado, numa das melhores sequências do longa, que se assemelha ao clima algo hostil, cheio de sorrisos amarelos, passivo-agressividade e nervosismo subcutâneo das reuniões de condomínio. Eventualmente, os porta-vozes do desastre percebem que aquelas pessoas, temerárias quanto ao alto fluxo de gente e de sujeira que paira sobre o futuro daquela região tranquila, não tem nada da passividade inocente esperada, e irão ativamente lutar contra o glamping caso suas demandas espaciais, ambientais e socioeconômicas não sejam atendidas. É a partir daí que decidem tentar abrir, dentro de certas limitações, um diálogo com Takumi, para tentar conquistar a confiança daquele que é uma espécie de líder comunitário, e do restante da cidade, por conseguinte – mas acabam descobrindo que há naquele faz-tudo taciturno muito mais do que a vista enxerga.
O que é desenvolvido a partir daí por Hamaguchi é uma série de momentos que variam entre a ternura e a tensão, em toda uma variação de situações e emoções que podem surpreender a um espectador que se deixe levar pelo clima por vezes austero da atmosfera que o diretor estabelece e pense que irá encarar uma narrativa sem maiores sobressaltos. A cumplicidade entre os dois representantes da companhia responsável pelo glamping, que em nada se identificam com o projeto capitalista desumanizador de seu chefe (que os convoca para reuniões presenciais em Tóquio, apenas para falar com eles à distância e apressadamente, por vídeo-chamada) e discutem suas vidas e sonhos; a relação da pequena Hana com a floresta, sua fauna, flora e seus mistérios; o forte espírito comunitário do vilarejo de Mizubiki e de seus pequenos comerciantes; as pequenas pistas sobre o passado de Takumi e a eventual revelação sobre sua verdadeira natureza. Atravessamos e somos atravessados por isso tudo, com um impacto que é sentido mesmo nas sequências de maior sutileza. Nos imergimos em Mizubiki, torcemos contra o glamping e nos sentimos aflitos quando alguma coisa dá errado ou toma rumos diferentes daqueles que esperamos. O desfecho do filme, nesse sentido, é daqueles que nos fazem prender a respiração até o último segundo, sendo também um dos quinhões mais ambíguos do conjunto (o que pode desagradar certas pessoas) e, no fim das contas, um dos melhores.
O Mal Não Existe pode não ter a mesma potência (e a mesma minutagem substancial – enfim, as propostas são distintas) de um Drive My Car, que hoje é o cartão de visitas de Hamaguchi para o mundo, mas é igualmente efetivo em provar suas qualidades enquanto um dos cineastas mais instigantes dos últimos anos. Seu último trabalho é muito mais do que uma história convencional sobre uma empresa impiedosa tentando lucrar às custas da destruição da natureza – esse é apenas um dado, entre os tantos sobre os quais o longa se debruça, e do meio pro final a fita toma rumos em narrativa e em linguagem que até nos fazem esquecer de que era esse o ponto de partida dela. Já mencionamos isso aqui, mas é impossível não frisar que os últimos minutos de O Mal Não Existe são, de fato, tensos e cortantes como o fio de uma navalha, ficando com o espectador após a sessão, na caminhada para casa ou para o bar mais próximo. Hamaguchi faz filmes inesquecíveis, que comunicam ao público uma série de tons de cinza sofisticados das relações sociais e da vida interior de cada um, com a desenvoltura que o bom cinema (e sobretudo a boa literatura) sabe fazer, e em tramas que sabem flertar com o impossível mesmo que ancoradas no mundano.
O MAL NÃO EXISTE (2024), dir. Ryūsuke Hamaguchi [trailer].
Sinopse: Takumi e sua filha Hana moram na vila de Mizubiki, perto de Tóquio. Um dia, os habitantes da aldeia tomam conhecimento de um plano para construir um camping de luxo para turistas na região. Mas a construção terá impacto no fornecimento de água e será uma ameaça ao equilíbrio ambiental do lugar.
Duração: 106 minutos.
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