RECORTES CRITICA: O Homem Crocodilo (2023)
Crítica do documentário sobre o cantor Arrigo Barnabé, por Igor Nolasco.
Um dos nomes-chave para o movimento musical da Vanguarda Paulista (apesar de ser natural de Londrina, no Paraná) que explode nos anos 1980 é o pianista, arranjador, cantor e compositor Arrigo Barnabé. Tendo atuado, ao longo das últimas décadas, em fitas de cineastas como Chico Botelho1 e Rogério Sganzerla, suas incursões no cinema costumam se dar em filmes um tanto quanto livres – “experimentais”, se formos lançar mão desse adjetivo guarda-chuva tão exaustivamente utilizado, para obras tão diferentes entre si, em matéria de cinema. Só nos últimos 4 anos, o músico participou como ator de Luz nos Trópicos (2020), de Paula Gaitán, e seu processo de composição foi objeto do documentário Ostinato (2021), da mesma diretora. A relação do autor de LPs icônicos da discografia brasileira (sobretudo Clara Crocodilo e Tubarões Voadores) com suas raízes paranaenses é uma das coisas que o diretor Rodrigo Grota busca explorar em O Homem Crocodilo, longa que foi um dos destaques do 16º IN-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical. Realizado em São Paulo, o evento também contou com um braço on-line de sua programação, que incluiu a veiculação gratuita do filme de Grota entre os títulos disponíveis.
Se frisamos aqui que a relação entre Barnabé e seu torrão natal é “uma das” questões que interessam a O Homem Crocodilo, é porque ela está longe de ser sua temática principal. O diretor Rodrigo Grota parece estar mais interessado em criar composições e texturas experimentais em imagem/som do que em focar exclusivamente nos depoimentos de Arrigo, que jamais são dispostos ao espectador de forma óbvia ou linear. Isso é bom, em certa medida: tentar encaixar o tresloucado, dodecafônico e musicalmente revolucionário Arrigo Barnabé em um formato fílmico convencional e protocolar jamais daria certo; resultaria em um produto pouquíssimo interessante e indigno de suas qualidades enquanto artista. Em meio a esses delírios imagéticos, por vezes temos momentos dignos de nota nos quais o próprio artista surge declamando textos ou interagindo livremente com elementos e figuras colocados em cena.
Talvez o que pese para um projeto como O Homem Crocodilo seja justamente o conflito de interesses entre as claras ambições de seu realizador e a proposta que o filme, teoricamente, almeja seguir: o que o cineasta faz de mais criativo e interessante, em matéria de imagem, mal e mal tem a ver com Arrigo Barnabé e seu “universo Clara Crocodilo”. Nesse sentido, é quase um filme-ensaio ou videoarte (muito mais do que um documentário), que se beneficiaria de alçar voo sem precisar ancorar-se a um objeto material tão emblemático como um músico do quilate de Barnabé, que por vezes parece meio perdido em meio ao conjunto que o diretor tenta elaborar. Seus depoimentos sobre os anos em Londrina, espalhados ao longo da minutagem, acabam dizendo pouco; quando dispostos ao público por tempo o suficiente para construir uma imagem mental possível desses anos formativos, são prontamente justapostos às sequências oníricas (mais pesadelos febris do que sonhos) que, a rigor, não conversam com o que estava sendo dito. Não que a disparidade nessa justaposição não tenha algo de intencional, mas no fim das contas fica parecendo, mesmo, que o longa se utiliza da figura de Arrigo para atrair o interesse do espectador e, uma vez o tendo fisgado, tecer o balaio de experimentações cinematográficas que pretende mostrar. Isso não é necessariamente um problema – não mais do que qualquer filme que contrata um ator para fazer uma participação especial, por exemplo – mas acaba sendo-o a partir do momento em que as sequências arquitetadas por Grota tornam-se progressivamente mais repetitivas. As boas ideias e os planos interessantes estão lá, mas poderiam ser compactados num curta ou média-metragem que não necessariamente se prendesse à relação de Arrigo com a cidade paranaense.
O Homem Crocodilo é um filme que talvez agrade os fãs mais aficionados pela obra do músico; há toda uma ótima sequência dedicada a Tubarões Voadores que estiliza os temas do disco no traço das histórias em quadrinhos tão caras a Barnabé, e em dado momento é possível fisgar breves comentários sobre trabalhos menos conhecidos, como a missa mortuária dedicada a Arthur Bispo do Rosário2. Apesar disso, quanto mais a projeção avança, menos Arrigo há no filme, e a impressão que se tem ao final é a de que sua presença ali é, de fato, mais um meio do que um fim para que o longa leve suas ideias à cabo.
O universo sensorial elaborado por Rodrigo Grota pode conquistar uma parcela do público, e tem qualidade para fazê-lo. Uma outra parcela, porém, assistirá às vinhetas que compõem boa parte do todo aguardando Arrigo emergir parcialmente com sua cabeça para fora d’água por alguns minutinhos, antes de afundar-se novamente, como um crocodilo que só mostra seus olhos na hora de dar o bote.
O HOMEM CROCODILO (2024), dir. Rodrigo Grota [trailer].
Sinopse: Arrigo Barnabé, uma figura proeminente do movimento Vanguarda Paulistana, é o centro das atenções neste filme experimental, que investiga seus anos de formação em Londrina antes de se estabelecer em São Paulo.
Duração: 84 minutos.
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Em Cidade Oculta (Chico Botelho, 1986), Barnabé não apenas atua, como também provê a trilha sonora do filme, lançada por ele em um LP homônimo. Ele também é responsável pela trilha sonora de Ed Mort (Alain Fresnot, 1997).
Artista plástico sergipano (1909-1989) que passou grande parte de sua vida internado em instituições psiquiátricas, hoje tem seu trabalho devidamente valorizado em meio à história da arte brasileira. Arrigo Barnabé também dedicaria outra missa mortuária ao amigo e colega de Vanguarda Paulista, Itamar Assumpção (1949-2003).