RECORTES CRITICA: O Dia Que Te Conheci (2023)
Crítica do novo filme do diretor André Novais Oliveira, por Igor Nolasco.
Quem vem acompanhando as mostras e festivais brasileiros ao longo dos últimos anos está ciente de que o pessoal da Filmes de Plástico, produtora mineira originária da cidade de Contagem, é responsável por injetar um bem-vindo frescor em nossa cinematografia, e vem gradualmente sendo mais e mais reconhecido dentro e fora de nosso país. Em 2022, tivemos Marte Um, de Gabriel Martins, filme muito tenro, muito doloroso e muito agridoce como um todo, que foi recebido com prêmios e entusiasmo por boa parte da crítica e do público que teve a oportunidade de assisti-lo. Agora é a hora e a vez do cineasta André Novais Oliveira retomar a parceria com a atriz Grace Passô (que já havia dirigido em Temporada, seu longa anterior) para trazer à luz O dia que te conheci, espécie de comédia romântica construída dentro dos expedientes característicos da Filmes de Plástico que, de 2023 pra cá, circulou por espaços como a Mostra de São Paulo, o Festival do Rio, a Mostra de Cinema de Tiradentes e o festival argentino de Mar del Plata. A obra chega à programação do circuito comercial essa quinta-feira (26/09).
Temos, desde seu cartaz, uma fita que se utiliza do formato da comédia romântica para exercitar sensibilidades que subvertem o lugar-comum do gênero. Ora, a própria divulgação do cartaz chegou a causar certo frisson nas redes sociais! E por que? Temos um homem e uma mulher pretos diante de um fundo branco de estúdio, sorridentes e recostados um no outro, como Richard Gere e Julia Roberts no pôster de Uma Linda Mulher: uma coisa estranha para o cinema brasileiro, no qual as comédias românticas costumam ser produzidas pelos grandes conglomerados televisivos e protagonizados por seus galãs e mocinhas, de rostos harmonizados, dentes clareados e peles mais ainda. O novo longa de André Novais explora essa temática racial mesmo discursivamente: as duas partes que formarão o casal se conhecem enquanto parte do escasso contingente de pessoas negras que trabalha em um colégio particular. Esse ponto de contato é uma das coisas que os une, num primeiro momento, e é comentado por ambos de forma frontal, direta e muito natural.
É preciso sempre ser cuidadoso ao elogiar os diálogos de um filme acusando-os de “naturalistas”; isso reforça uma ideia de que o bom diálogo é necessariamente espontâneo, coloquial, e que uma obra que se utilize de diálogos estilizados de modo pouco convencional estaria necessariamente quebrando uma ideia de verossimilhança, sendo portanto defeituosa nesse sentido. Essa concepção é evidentemente primária, e já discorremos sobre essa questão em maior nível de detalhe em nossa crítica para Armadilha, de M. Night Shyamalan. Mas fato é que, em sua proposta de se apresentarem como naturais, os diálogos de André Novais estão sempre entre os pontos altos de seus filmes. É uma delícia escutar seus personagens conversando; em um longa como O dia que te conheci, o humor por vezes surge de forma involuntária, para além das gags calculadas pelo texto, única e exclusivamente através da maneira com a qual os atores lidam com aquele material, enriquecendo-o com suas microexpressões, com certos cacos, com uma consciência de onde e como modular o tom de voz. A isso, soma-se uma certa preferência de Novais por planos longos, com poucos cortes ou mesmo sem nenhum, nos quais a interação entre seus protagonistas pode respirar por minutos ininterruptos — permitindo com que espectador sinta, de forma muito mais palpável, o aflorar da química entre a Luisa de Grace Passô e o Zeca de Renato Novaes, que acompanha como testemunha, como se estivesse assistindo àquele desenrolar in loco, primeiro na rua, depois na intimidade do lar.
As personalidades podem parecer, num primeiro momento, contrastantes — ele, mais discreto e um tanto retraído; ela, um tanto mais expansiva e brincalhona. Ao longo da minutagem, no entanto, vamos descobrindo que aquelas pessoas tem mais em comum do que elas mesmas seriam capazes de imaginar. Nesse sentido, O dia que te conheci é um filme bem sóbrio, maduro, que discute com bastante desenvoltura a vida interior de seu casal protagonista — o uso de medicamentos para ansiedade e antidepressivos, por exemplo, é discutido sem tabu, em momentos de maior seriedade em meio a um conjunto que, ainda assim, não perde a leveza que dá o tom do filme. Aliás, em tom e em linguagem, é uma produção que dá continuidade a um movimento que já parecia ter sido iniciado por Marte Um, que é o de construir narrativas dentro desse universo diegético característico da Filmes de Plástico em um formato que parece dialogar melhor com o grande público, para que assim esses filmes possam ganhar mais espaço no circuito, maior tração comercial e maior apelo para o boca-a-boca. Não que produções como Temporada e No coração do mundo sejam “herméticas” (termo terrivelmente limitador, e espécie de bicho-papão para o cinema brasileiro, que é constantemente acusado de sê-lo). O lance é se adequar a linguagens mais tradicionais e que tem menos a ver com o cinema “de festivais”. Com Marte Um, por exemplo, funcionou. O novo trabalho de Novaes, muito mais autocontido do que o de Gabriel Martins, aparenta almejar um patamar semelhante.
Bem amarrado em uma duração compacta, O dia que te conheci é um haikai delicioso. Com a decisão de dedicar quase toda a minutagem do filme a, de fato, retratar um único dia, Novais subverte as expectativas que são impostas sobre as regras da comédia romântica. Seu interesse está, de fato, em captar aquele momento em que duas pessoas conversam de verdade pela primeira vez, tomam a primeira cerveja juntos, criam intimidade, se abrem umas com as outras e, por fim, se desejam intensamente. É uma obra que abre uma tremenda margem para identificação: essa cumplicidade que é formada entre Zeca e Luisa, que precisa superar as barreiras das convenções sociais, da timidez e da vergonha para finalmente se consumar em algo mais, representa uma dinâmica através da qual uma porção de relacionamentos foi, é e será formada. É um filme que encapsula esse momento, preservando-o destacado de toda a história possível que se poderia se desenrolar a seguir; o que importa, aqui, é aquela euforia contida da primeira noite a dois que vai gradualmente se deixando expandir.
Em meio a isso, vamos percorrendo o trajeto pelo qual Zeca transita ao longo de seu dia, e percebemos a diferença de abordagem para cada um desses lugares. Na casa onde mora com um colega de quarto, luzes quentes suaves e a sensação de porto seguro. No ônibus, que pega atrasadíssimo, Sol estourado infligindo-se sobre as janelas: calor, suor, correria. No botequim do Milton (uma das melhores sequências do longa), um espaço que parece, momentaneamente, deslocado do espaço-tempo. Isso pra não falar das belas externas noturnas; Belo Horizonte, que é onde boa parte da ação se ambienta, é uma cidade interessantíssima visualmente e Novaes & companhia a filmam de um jeito que em muito foge do óbvio. Mesmo uma caminhada pelas ruas que levam ao agito debaixo do viaduto de Santa Tereza possui algo de especial — e isso, também, reside no talento do cineasta para lidar não apenas com os diálogos, mas também com os silêncios. Os silêncios aqui são muito importantes, quase tanto quanto o que é dito. Nesses momentos de respiro, sentimos os dois personagens refletindo se irão, realmente, entregar-se um ao outro. E, efetivamente, torcemos por eles.
O dia que te conheci é uma obra que pode parecer narrativa e estruturalmente simples, mas tem muito a oferecer ao espectador que se deixar levar por sua proposta. Seu tato para as questões de raça e classe, emprego e desemprego, saúde mental e trauma é ao mesmo tempo de uma delicadeza exemplar e de um despojamento admirável: nada parece estar no texto e em tela para adicionar um peso ostensivo ao clima majoritariamente leve do conjunto; tudo flui com a naturalidade dos diálogos de Novais. Destaca-se uma Grace Passô surpreendente, num papel muito diferente dos que habitualmente a vemos interpretar, e no qual ela está muito bem — e parece, mesmo, estar se divertindo. Seu companheiro de cena não se deixa intimidar, e os dois formam realmente um casal com boa química. É uma das boas surpresas que o cinema brasileiro entregou de uns anos pra cá; tem a leveza do orvalho matinal, e dá continuidade à essa mudança de curso interessante que a Filmes de Plástico vem empreendendo.
O DIA QUE TE CONHECI, dir. André Novais Oliveira.
Sinopse: Zeca todo dia tenta levantar cedinho pra pegar o ônibus e chegar, uma hora e meia depois, na escola da cidade vizinha, onde trabalha como bibliotecário. Acordar cedo anda cada vez mais difícil, há algo que o impede de manter esse cotidiano. Um dia Zeca conhece Luisa.
Duração: 71 minutos.
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Parabéns pela análise, fiquei motivado a assistir o filme, pena que o filme não deva circular fora do circuito cult.
Sempre aprendendo com seu texto, hoje foi a “diegética” 😀