RECORTES CRITICA: Nada Será Como Antes (2024)
Crítica do documentário sobre a criação dos álbuns Clube da Esquina, por Igor Nolasco.
Como fazer um documentário sobre uma geração emblemática de músicos sem tratá-los como ídolos a serem adorados, estátuas de mármore ou de gesso? Como discorrer sobre a gravação de um disco catedrático da música popular brasileira sem colocá-lo como algo mítico, divino e inalcançável? Como entrevistar os diversos compositores, letristas e instrumentistas envolvidos nessa história, a maior parte dos quais amigos pertencentes a um mesmo grupo de uma mesma cidade, sem que seus depoimentos se percam em digressões anedóticas? Como conciliar o tempo de tela de toda essa gente com aquele dedicado ao principal cantor da turma, que por acaso é também um dos cantores mais importantes da história do país, sem colocá-lo num patamar de Rei-Sol, centro das atenções em meio a esse sistema? Realizar um bom documentário sobre o seminal Clube da Esquina não é exatamente uma tarefa fácil. Pela posição de importância que essa geração mineira e seu álbum duplo de 1972 ocupam na MPB, praticamente tudo o que poderia ser dito sobre eles já foi registrado, seja em reportagem, entrevista, filme, programa de televisão, livro ou pesquisa acadêmica. A cineasta Ana Rieper (diretora de outro ótimo documentário sobre música popular, Vou Rifar Meu Coração), portanto, encarava o desafio de fazer um longa que fugisse do óbvio, do batido, e que ao mesmo tempo fizesse jus ao material que sua produção tomava como objeto. Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina chegou ao circuito de exibição brasileiro na última semana, após marcar presença na Mostra de São Paulo e no Festival do Rio em 2023.
É com alívio que podemos constatar, já desde os primeiros minutos de projeção, que estamos diante de um trabalho que desbarata com facilidade a maior parte das armadilhas em que poderia cair. Tomando como ponto de partida o núcleo da família Borges, entre os quais encontra-se uma quantidade substancial dos “personagens principais” de sua história, o documentário lança mão de seus depoimentos para construir, através do relato oral, um panorama daquela Belo Horizonte dos anos 1960-1970, muito bem auxiliado por pontuais (e belíssimas, sobretudo quando vistas em tela grande) imagens de arquivo do período. A justaposição com as tomadas gravadas na BH dos dias atuais, que vão de establishing shots1 a sequências que retratam Lô e Márcio Borges flanando pela cidade enquanto conversam, flui com muita naturalidade e já faz o trabalho de situar o espectador espacial e temporalmente.
Belo Horizonte é um caso singular entre as capitais brasileiras; o planejamento urbano de sua região central e de alguns de seus bairros (entre os quais Santa Tereza, onde o titular Clube da Esquina foi formado), somado ao caráter naturalmente sinuoso de sua topografia, cortesia das tradicionais ladeiras mineiras, dão à cidade uma cara que é toda dela. Não é preciso ser previamente familiarizado com o local para conseguir visualizar o jovem Lô Borges varando noites tocando Beatles e Chico Buarque ao violão na calçada: o panorama apresentado por Rieper, somado aos ricos depoimentos de seus entrevistados (todos muito à vontade), se encarregam de inserir o público naquele universo.
Beatles e Chico Buarque dão a tônica, sim, mas também Miles Davis e Genesis, música clássica e pontos de macumba, fora uma porção de outros sons. O caldo cultural de influências e particularidades no gosto musical de cada integrante do “clube” é amplamente revisado nas entrevistas, permitindo uma visão tridimensional da sonoridade tão particular do disco de 1972, que só poderia mesmo ter sido feito por aquele balaio de jovens com formações tão distintas e cheios de lenha pra queimar. O compêndio lírico sobre o qual as conversas captadas pela câmera se debruçam não se restringe apenas ao álbum mais conhecido; expande-se, de algum modo, a boa parte das ricas colaborações que surgiram daquele núcleo a partir do final da década de 1960. As falas tão francas, por meio das quais os músicos comentam sobre o processo de composição e gravação das canções, são costuradas por uma montagem preocupada em arquitetar uma narrativa mais ou menos coesa, ainda que inevitavelmente elíptica.
A fita lida com elegância com essas elipses, realmente incontornáveis dada a quantidade de assuntos a serem abordados e figuras a serem ouvidas, preocupando-se mais em transmitir o clima de cumplicidade existente entre seus objetos (no passado, claro, mas de certa forma no presente, quando elenca uma série de depoimentos tão docemente nostálgicos) do que em elencar os eventos descritos numa cronologia rigorosa – um erro fatal cometido por certas produções documentais sobre música, que por vezes prendem-se desnecessariamente às datas e à precisão. Um filme não precisa mimetizar aquelas seções das exposições de arte pictórica, geralmente relegadas ao final da galeria, em que uma linha do tempo da vida do artista é literalmente desenhada, com todos os anos-chave de sua obra sendo numericamente estampados. Nada Será Como Antes beneficia-se de não se ater excessivamente a essa cronologia. Esse caráter elíptico e algo descontraído combina muito mais com o clima acolhedor de sequências como aquela em que, na residência dos Borges, Lô revela a criação da canção Para Lennon e McCartney, executada ao violão e ao piano com direito a coro familiar, que desabrocha em uma montagem com imagens de arquivo.
Talvez o momento em que o conjunto mais caia no convencional seja na maneira como emprega as fotografias e clipes dos “membros” do Clube da Esquina interagindo, gravando e se apresentando à época em que encontravam-se em plena atividade artística, para ilustrar o que está sendo narrado por algum deles. Se as imagens de arquivo de Belo Horizonte são usadas com parcimônia e de maneira efetiva, o material fotográfico realmente ligado aos músicos por vezes dá ao documentário aquela carinha de especial de TV – o que não é necessariamente um demérito, evidentemente, mas envereda-se por outro tipo de linguagem que não se mostra tão interessante quanto aquela que predomina na maior parte da minutagem. O excesso de foco nos depoimentos pode até ser um pouco maçante ao espectador casual, imagina-se – sobretudo quando figuras como Wagner Tiso ou Toninho Horta, virtuoses por excelência, se atém por certos momentos em falar sobre música de uma perspectiva mais técnica – mas são raras as vezes em que a diretora e seus hábeis montadores deixam a peteca cair. A beleza da escolha de abrir o filme com um trecho de Milton apresentando-se no clássico programa Ensaio / MPB Especial, seu perfil contornado pela iluminação discreta na gravação em preto-e-branco dando-lhe um ar algo misterioso, é ressaltada pelo fato de que, imediatamente após essa sequência, passamos um vasto tempo imergindo nos depoimentos da família Borges, em que o famoso Bituca é citado quase que como um personagem recorrente daquele período, um amigo que transita por aquelas histórias. Quando o próprio Milton é entrevistado, o mistério em que fora envolto por sua apresentação e pelas subsequentes historietas dos Borges é desmontado por um artista que fala sobre si mesmo, sua vida e suas parcerias de forma despretensiosa e, na falta de uma palavra melhor para descrever um cantor tão celestial, humana. Sua presença no documentário é muito beneficiada pelo fato de que, ali, ele está despido do peso que geralmente é colocado sobre seus ombros na história da música popular brasileira, o de grande voz, diapasão definitivo, de nosso cancioneiro. Ali, ele é “só mais um” entrevistado – e isso é ótimo para que o clima de harmonia e de companheirismo indiscriminado tão citado por todos realmente seja refletido na estrutura do todo. A bateria de sequências rodadas no presente e a rica contribuição que cada entrevistado tem a dar são o ponto forte de Nada Será Como Antes – e quando, já do meio para o final, as imagens de arquivo começam a ganhar mais e mais espaço, ocasionalmente elas privam o longa de brilhar com o que tem de mais original e realmente estanque. O filme de arquivo é uma expressão artística particular e digna de nota, tanto quanto o documentário gravado in loco; imagino que não precisemos discorrer sobre isso em maior grau neste espaço. Ficar no meio do caminho é uma escolha recorrente para produções de caráter mais panorâmico, e fato é que a fita em questão é muito mais interessante quando confia na força do próprio taco.
Entre um ou outro recurso de linguagem ou de abordagem que destoam um pouco do bojo da obra, o novo documentário de Ana Rieper organiza de forma coesa as tantas pessoas, perspectivas, ideias, músicas e histórias do Clube da Esquina em uma minutagem enxuta que passa em um piscar de olhos para aqueles que possuem algum apreço ou laço afetivo com as canções de Milton Nascimento, Lô Borges e companhia. Me parece muito mais bem-resolvido do que o grosso da produção documental sobre música popular brasileira que coteja nas mostras e festivais ao longo dos últimos anos, e que por vezes tendem a ser protocolares ou pouco inspirados – adjetivos dos quais Nada Será Como Antes passa longe. Se o filme certamente crescerá aos olhos de quem já admira a música nele retratada, com certeza também poderá ser uma oportuna porta de entrada àqueles que porventura não sejam devidamente familiarizados com esse microcosmo fonográfico riquíssimo.
NADA SERÁ COMO ANTES – A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA (2024), dir. Ana Rieper [trailer].
Sinopse: A produção musical do grupo de artistas que criou os álbuns “Clube da Esquina”, volumes 1 e 2. O processo de criação artística e inspiração poética desses músicos - lugares, pessoas e emoções que deram origem a cada uma dessas canções emblemáticas.
Duração: 79 minutos.
Obrigado por ler esta crítica da Recortes de Película!
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Termo anglófono utilizado para descrever o tipo de plano rápido inserido em uma obra audiovisual para familiarizar o público com as particularidades geográficas e paisagísticas do local onde a obra é ambientada.
Parabéns Igor! Saboreei o texto, agora falta o prato principal, assistir o filme!