“I am big, it’s the pictures that got small”. Assim falou Gloria Swanson, caracterizada como sua personagem Norma Desmond em Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder. O envelhecimento de uma atriz, seu esquecimento por parte da indústria de diversões, seu desgaste físico e neurológico, seu apego aos tempos de glória e sua dificuldade em acatar com as necessidades e as problemáticas dos novos tempos estão entre as principais temáticas do clássico norte-americano. De lá pra cá, essas questões encontraram eco em diversas outras produções, como o hollywoodiano O que terá acontecido a Baby Jane? (1962), de Robert Aldrich, ou o brasileiro Gata velha ainda mia (2014), de Rafael Primot (talvez o último bom trabalho de Regina Duarte). O que se vê em Malu, primeiro longa-metragem escrito e dirigido pelo cineasta Pedro Freire, é uma nova perspectiva para essas problemáticas, que exercita sensibilidades bem diferentes daquelas presentes nos exemplos supracitados. O filme, que estreou mundialmente no Festival de Sundance, chega à sua pré-estreia nacional nesta quinta-feira (10/10) no Festival do Rio.
Todo o cuidado na abordagem parece encontrar uma explicação a partir do momento em que descobrimos que se trata de um projeto deveras pessoal: o longa, afinal, é inspirado nos últimos anos de vida da atriz de teatro, cinema e televisão Malu Rocha, mãe do cineasta (e a caracterização de Yara de Novaes como a “biografada” de fato em muito remete à aparência física da mesma). Isso é assumido, inclusive, pelas cartelas do filme ao final da projeção; uma informação que é compartilhada ao espectador desavisado no momento em que cai o pano para, talvez, tentar não inferir em sua percepção sobre história e personagem ao longo da sessão. Escrever sobre Malu tendo isso em mente se torna, portanto, algo como uma armadilha retórica; é sempre difícil avaliar um filme calcado por um cineasta em figuras familiares e, ao propor-se a fazê-lo, corre-se sempre o risco de se soar insensível caso os comentários não se restrinjam a elogios acríticos. À revelia dessas preocupações, tentemos tecer alguns pensamentos sobre a obra.
Na narrativa, conhecemos a protagonista como uma atriz de meia-idade, desempregada e vivendo de uma pensão dada por um ex-marido, morando com Dona Lili, sua mãe idosa, em um lar simples no Rio de Janeiro. Seu sonho é transformar a casa em um centro cultural, trazendo o teatro para perto da comunidade que, ao longo dos últimos anos, foi crescendo ao redor da residência. Se, como prega Milton Nascimento na canção, “o artista tem que ir aonde o povo está”, o próprio filme coloca Malu Rocha em uma posição estanque em relação ao “povo”: mesmo morando em condições idênticas a este, não se porta como alguém de fato integrada àquela comunidade. Encara essa perspectiva como uma empreitada sonhadora, pequena missão civilizatória, como o Fitzcarraldo de Werner Herzog, com sua empreitada de montar uma casa de ópera na Amazônia peruana e trazer o tenor Enrico Caruso para cantar às tribos indígenas.
Boa parte das dinâmicas construídas pelo diretor Pedro Freire gira em torno da convivência e dos conflitos entre três gerações de mulheres, todas muito distintas entre si enquanto indivíduos. A mãe de Malu é mostrada como uma católica devotíssima (daquelas que os mais velhos entre nós ainda identificariam como “carola”) que encarna diversos preconceitos de raça, sexualidade e costumes — preconceitos estes que eventualmente são levados às últimas consequências. A personagem titular é quase uma Tigresa de Caetano Veloso: trabalhou no Hair, fala sobre comunismo à mesa e é usuária contumaz de cannabis. Como se o convívio entre essas duas sob um mesmo teto já não fosse suficientemente complicado, entra em cena Joana, filha de Malu (vivida por Carol Duarte, que vem se tornando presença constante no cinema brasileiro e mesmo internacional), jovem moradora de São Paulo que de certa forma seguiu os passos da mãe e tornou-se atriz. A partir do momento em que ela chega à residência familiar para passar uns tempos, no entanto, não tardamos a descobrir que essa filiação profissional não exime as duas de possuírem uma série de divergências e questões mal resolvidas, quase tantas quanto aquelas existentes entre Malu e sua mãe.
Essa, aliás, talvez seja uma das grandes questões temáticas de Malu: o trauma que é repassado de uma geração da família para a seguinte, em uma sucessão aparentemente infinita. Em um primeiro momento, sentimos as tensões entre Dona Lili e a protagonista como sendo naturalmente advindas dessas perspectivas antagônicas, senhora conservadora versus mulher de meia-idade progressista, arquétipos comuns e facilmente identificáveis por alguém familiarizado com os tipos brasileiros. Essa visão simplória é quebrada logo ao início, quando um bate-boca entre as duas chega às vias de fato da violência física; logo vemos que há ali algo mais sério. Mais adiante, em um dos raros momentos em que a personagem idosa abre-se aos demais e fala sobre sua infância e sua criação familiar (uma das melhores sequências do longa, em muito graças à performance de Juliana Carneiro da Cunha, à qual o filme dá a merecida importância), finalmente entendemos o porquê dela ser o que é, e sacamos que aquelas rusgas familiares tem raízes muito mais profundas. Dona Lili é produto de um típico lar de seu tempo, submisso à presença ostensiva e traumática de um patriarca tirânico e abusivo; Malu escapara das amarras sociais conservadoras para desenvolver sua formação artística no seio do teatro político, em muito influenciando sua visão de mundo e canalizando sua verve comportamental; Joana é a filha de um casal de artistas que não pode viver uma infância plena e jamais viu, em sua mãe, uma verdadeira figura materna que lhe criasse como tal. As dissonâncias entre avó, mãe e filha constituem os grandes embates narrativos do todo.
Ainda que tematicamente rico (afinal, conflitos familiares desse porte são matéria prima para a ficção desde tempos imemoráveis), talvez Malu peque em sua abordagem um tanto quanto comum. Tratando-se de um projeto tão sentimental, pelos diversos motivos supracitados, era de se esperar que o tom do filme fosse acompanhar o coração do mesmo, e no entanto são poucos os momentos em que a encenação de fato mostra-se expressiva. Destacam-se algumas das sequências focadas em Lili (como aquela sobre a qual comentamos há pouco) e uma cena focada em Tibira, personagem vivido por Átila Bee que, em dado momento, recita um (belo) texto cunhado, conforme nos revelam os créditos finais, pelo próprio ator. São quinhões que por vezes parecem até desconectados do restante, pois Freire se permite criar uma iluminação um pouco mais expressionista e se entrega a uma criação de atmosfera é resolvida dentro das próprias sequências. Quando estas findam, retornamos ao universo visual e tonal que reina durante quase toda a minutagem de Malu: as cores lavadas, a iluminação e a encenação naturalísticas; enfim, algo que por vezes soa pouco inspirado, ainda que dialogue com os problemas temáticos abordados pelo longa. Estes são, claro, tão concretos, palpáveis e desnudos quanto as paredes sem reboco da casa de Malu, que relembra os tempos idos em que tomava uísque com as atrizes do high society enquanto espalha baldes pela sala para tentar conter goteiras.
Um dos grandes desperdícios de potencial de Malu está justamente em sua dificuldade de articular uma encenação inventiva e, por vezes, até coesa para contar a história dessas três mulheres, e de Malu em particular. Existem algumas passagens de tempo ao longo da trama, mas a montagem lida de maneira tão desinteressada com estas que um espectador desatento pode acabar não percebendo-as, precisando pescar uma ou outra referência através dos diálogos ou das situações. Isso se intensifica na reta final, quando ocorre o último embate entre Lili e Malu e, quase que imediatamente após findado o conflito, a protagonista começa a apresentar problemas de memória, de locomoção e de coordenação. Ora, a montagem conduz esses eventos como se eles estivessem acontecendo todos no mesmo dia. Fica parecendo uma coisa apressada; o filme não chega a duas horas de duração, e talvez em um esforço para manter a minutagem enxuta acaba abrindo mão de desenvolver melhor as nuances de sua personagem titular.
É uma pena, pois Yara de Novaes está excelente como Malu Rocha, e sua performance é de fato a pedra angular que dá sustento ao filme; a vemos carismática, simpática, brejeira, sonhadora mas também agressiva, impulsiva, frustrada e traumatizada. Essa porção final da fita tinha de tudo para oferecer, à atriz, ainda mais material com o qual trabalhar, representando uma mulher orgulhosa com sua saúde fragilizada. Felizmente, temos boas sequências dedicadas a explorar essa relação renovada entre mãe e filha, com a personagem de Carol Duarte assumindo um papel ativo e se reconciliando, nos seus próprios termos, com Malu. Uma pena que isso se dê justamente nesse momento em que direção e montagem parecem empenhados em “resolver” a história da forma mais econômica possível.
Essa economia talvez seja o maior pecado de Malu: sua protagonista seria, mesmo, muito mais tridimensional caso o filme a deixasse respirar mais. Ao levar à cabo a tarefa de trabalhar as relações entre as três mulheres, com mais um personagem correndo por fora (o Tibira de Átila Bee, amigo de Malu que vive em um anexo de sua casa), a fita parece estruturada de maneira a dar alguns momentos de destaque a cada um deles para, por fim, fechar-se em si mesma. Isso definitivamente é uma escolha narrativa, mas esses momentos-chave acabam parecendo por demasiado soltos e termina-se a sessão com uma vontade de ter visto mais da própria Malu. Apesar dos apesares, definitivamente é um filme feito com muita paixão, e que certamente irá apresentar a história esquecida de Malu Rocha a muita gente. Isso, por si só, já é alguma coisa.
MALU, dir. Pedro Freire.
Sinopse: Malu, uma mulher de meia idade com um passado artístico glorioso, se vê presa em um caos existencial. A complexa relação com sua mãe conservadora e com sua filha adulta torna a crise ainda mais aguda, em meio a momentos de carinho e alegria entre as três.
Duração: 103 minutos. Assista ao trailer.
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