RECORTES CRITICA: Maestro (2023)
Crítica da cinebiografia indicada a categoria de Melhor Filme no Oscar 2024, por Igor Nolasco.
Em dado momento do Cenas de um Casamento (1973) de Bergman, o drama doméstico de marido e mulher em vias de separação resulta na constatação, verbalizada por uma das partes, de que ambos seriam “analfabetos emocionais”. Ora, que belo poder de síntese, o dessa expressão. Em todo tipo de dramaturgia ou literatura, proliferam as narrativas sobre analfabetos emocionais; esta talvez seja uma das temáticas que mais se relacionam com a condição humana. Mais do que meramente uma produção biográfica sobre o compositor e regente de orquestra Leonard Bernstein, Maestro — novo longa de Bradley Cooper, que dirige, protagoniza e assume a co-autoria do roteiro — é um filme sobre dois analfabetos emocionais. O que o difere da narrativa bergmaniana, a rigor, é a forma que as personagens encontram para se resolverem e melhor entenderem suas próprias vidas interiores.
Primeiro projeto diretorial de Cooper desde a reimaginação de Nasce Uma Estrela em 2018, Maestro, à primeira vista, pode parecer uma tentativa autoevidente do cineasta em se alinhar-se com as tendências exigidas pelas premiações mais prestigiadas da indústria do cinema. Não deixa de sê-lo, em certa medida, mas o faz com muito mais dignidade e criatividade do que boa parte dos filões do gênero. Cooper genuinamente parece querer dizer algo com a história que está contando, e seu Bernstein está longe de ser um retrato oficialesco do personagem real.
Os minutos preliminares do filme, ainda que exibam um diretor seguro e sem medo de arriscar decupagens arrojadas (mesmo em sequências que mostrem pessoas descendo as escadas ou atravessando o corredor), são permeados por um senso de urgência em apresentar e contextualizar o protagonista o mais depressa possível e avançar rapidamente pelos primeiros anos do período de sua vida que é englobado pelo recorte temporal do texto. A estreia de Bernstein como regente de orquestra, momento tão importante para a formação do personagem que é relembrado diversas vezes em diálogos posteriores, é uma sequência econômica: logo após a primeira nota, o corte nos leva para a próxima cena. A justificativa dada em tela (“é como se, logo após aquela primeira nota, eu não tivesse pensado em mais nada”) não convence: o que parece ao espectador minimamente familiarizado com a campanha por Maestro na imprensa especializada é que Cooper “esconde” os momentos de Bernstein como regente nesse quinhão do longa para dar maior destaque e peso à grande sequência para a qual ele, supostamente, teria se preparado por 6 anos. A sequência em questão de fato é catártica e uma das melhores partes do conjunto, mas até chegarmos próximos a ela, Cooper por vezes parece tímido em mostrar o objeto de sua obra realizando seu ofício. Essa economia em encaixar a cronologia da história dentro da diegese também atravessa outros momentos e personagens — em uma sequência, Felicia, futura esposa do protagonista, é uma jovem atriz aspirante e semiamadora; após o corte, já é uma profissional bem-sucedida sendo ovacionada no palco. Transições como as supracitadas por vezes chegam perto de tirar o peso de tais conquistas.
Mesmo na pressa de chegar na parte da história de Leonard Bernstein que efetivamente lhe interessa, o filme ainda encontra espaço para bons momentos em seu primeiro ato: o animado sarau em que o regente e Felicia se conhecem é uma das sequências mais bem resolvidas desse início, com começo, meio e fim belíssimos e a uma introdução palpável à química entre Cooper e Carey Mulligan (que vem ganhando cada vez mais atenção em Hollywood, mas já se mostra uma atriz interessante desde seus primeiros trabalhos na televisão inglesa, décadas atrás). A dinâmica entre os dois é a viga-mestra do filme, e quando vemos os dois sentando-se juntos no parque, ou flertando no teatro com as luzes apagadas, efetivamente sentimos aquela relação sendo construída, apesar das elipses temporais que são da natureza de qualquer produção biográfica.
É a partir da hora em que a felicidade do casal começa a azedar que a direção de Cooper mais brilha: o distanciamento entre Bernstein e Felicia reflete nos enquadramentos dos ambientes domésticos, com as personagens sempre vistas à distância, por através de uma janela, meio apagados por uma cortina, semi-ocultos por uma porta entreaberta. Nesse sentido, Maestro tem um cuidado com a decupagem que parece particularmente raro no cinema norte-americano contemporâneo. Tais planos — que também recebem, vez ou outra, alguma carga contemplativa trabalhada em sua duração — estão, em questão de linguagem, entre o que o filme faz de melhor: mais do que o grandioso momento em que finalmente vemos o protagonista conduzir de fato, mais do que o fator de choque em suas traições, mais do que o comentário político/social que por vezes aparece em um ou outro diálogo. O drama doméstico é o verdadeiro destaque e a verdadeira força de um filme sobre um músico celebrado, na contramão de produções análogas que lidam bem com a atividade artística do biografado, mas pecam em retratar de forma minimamente fora da curva sua vida pessoal. Os últimos dias da relação entre Bernstein e Felicia, onde o vemos cuidando dela durante sua doença e é sentida a reconciliação total entre os dois, são de maior impacto emocional do que qualquer sequência envolvendo música. É quando os dois personagens, antes analfabetos emocionais que atacavam um ao outro e a si próprios através de palavras e gestos, de fato chegam à maturidade de suas vidas interiores.
Se Maestro peca em alguma coisa, é pelo excesso. É um filme que está, podem dizer alguns, “tentando demais”. E é, de fato, um filme sobre excessos: Bernstein é excessivo em seus vícios, em sua infidelidade, em seu ritmo de trabalho, da mesma maneira que é excessivo em sua devoção de corpo e alma por sua arte. E Cooper entrega uma obra, ainda que por vezes exagerada, feita com paixão — em meio a tantos filmes sem alma que vemos por aí.
MAESTRO (2023), dir. Bradley Cooper [trailer].
Sinopse: O maestro americano Leonard Bernstein se apaixona pela atriz costarriquenha Felicia Montealegre.
Duração: 129 minutos.
Obrigado por ler esta crítica da Recortes de Película!
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Excelente texto! Não assisti o filme ainda, mas depois dessa resenha fiquei ansioso.