RECORTES CRITICA: La Chimera (2023)
Crítica do vencedor do Prêmio AFCAE do 76º Festival de Cannes, por Igor Nolasco.
Há algo necessariamente interessante, falando do ponto de vista narrativo, nos vagabundos, nos saqueadores, nos malandros, nos pequenos contraventores. Literatura e cinema sabem bem disso. O que diferencia uma história centrada naqueles que passam a perna nos demais (e por vezes se veem às rusgas com a lei) das tantas outras existentes acerca desse mesmo assunto? A forma como seu artífice a conduz, desenvolvendo esse conceito para além do óbvio – ainda que não abra mão de suas marcas mais tradicionais. É mais ou menos isso que a diretora Alice Rohrwacher articula em A Quimera, seu último longa-metragem, que chegou ao circuito comercial global em 2024, tendo rodado pelo circuito de mostras e festivais ao longo do ano anterior após competir pela Palma no Festival de Cannes.
Como discorremos sobre aqui na Recortes de Película, em nossa crítica sobre Rivais: 2024 parece estar sendo o ano de Josh O’Connor; e volto a cravar: O’Connor é uma revelação. Se em Rivais ele já rouba a cena dividindo protagonismo com outros dois atores, aqui ele deita e rola com sua performance ao, basicamente, ter um filme todo para si. Na pele de Arthur, um arqueólogo que possui o dom algo sobrenatural de sentir e descobrir tumbas etruscas no subsolo de cidades da região da Toscana, na Itália, O’Connor conduz de forma discreta uma bela trama que discorre sobre perda, luto, solidão, a vida à margem das normas sociais (e do capitalismo) e, sobretudo, sobre oportunidades para recomeçar. Aqui o ator exercita certos músculos dramáticos diferentes daqueles que predominam durante a maior parte da minutagem de Rivais: seu personagem em A Quimera é muito mais sutil, introvertido, algo taciturno e de poucas palavras. Contrasta em muito com restante do grupo de violadores de tumbas com o qual trabalha; esses, sim, perfeitamente afinados com a típica ideia que se tem dos marginais de sorriso fácil, que estão sempre se virando na cavação para garantir a féria do dia. Nesses casos, a cavação é verdadeiramente literal – e, a princípio, sem escrúpulos.
A princípio, sim, pois isso muda a partir do momento em que é introduzida a brasileira Italia (quase um oxímoro), interpretada por Carol Duarte – e para nós, enquanto público, há alguma coisa desconcertante, no bom sentido (em que emergimos levemente do que está em tela, naquele lampejo de identificação), em assistir a uma produção estrangeira onde aparece alguém que, por vezes, fala uma ou outra frase no português brasileiro. Abrigada sob o teto de uma pianista idosa que lhe dá aulas de música, ela em verdade trabalha mais como uma espécie de criada para a senhoria. Mãe solteira de dois filhos, que esconde dos demais habitantes da casa, é com ela que Arthur – que começa a viver sob o mesmo teto – passa, gradualmente, a se identificar e se abrir enquanto pessoa; entendemos desde o princípio que ele encontrava-se retraído após o falecimento de sua companheira, Beniamina, e que se viu obrigado a voltar aos roubos após sair da cadeia numa pobreza franciscana (fumante, ele passa quase toda a minutagem pedindo isqueiros emprestados ou acendendo seus cigarros no gás). Arthur e Italia compartilham uma série de momentos tenros, que estão entre o que há de mais doce em um filme que, quando quer, é muito trágico – não apenas no que diz respeito ao personagem de O’Connor, uma vez que Italia também possui suas questões pessoais, palpabilíssimas e bem desenvolvidas (a maternidade solo, a indigência, a educação dos filhos, seu desejo de aprender a música independente da pouca aptidão à mesma, etc). E é a partir de sua percepção acerca da pilhagem das tumbas que o protagonista passa a, aparentemente pela primeira vez, questionar de verdade a moralidade no que está fazendo – justamente quando seus amigos e os marchands para quem eles vendem as relíquias etruscas mais querem usar e abusar de seu dom em localizá-las.
Moralidade, sim, não moralismo – isso é algo que Rohrwacher vai levar às últimas consequências nas últimas etapas da obra. Os embates entre cavadores e compradores passam a ser cada vez mais acentuados na medida em que o longa progride, chegando até a um esboço de comentário sobre a luta de classes. Enquanto um proletário que faz o serviço sujo, Arthur é, por definição, um típico “ladrão com coração de ouro”, que usa de sua aptidão sobrenatural – que é batizada como “quimera” – para garantir o pão de cada dia, mas mostra-se uma pessoa sensível, sem ganância e que sabe manejar seu dom, conforme a situação exige, quando sente que está sendo explorado. É, em todos os sentidos, um vagabundo iluminado, como quis o poeta1.
Em matéria de linguagem, Rohrwacher foge do óbvio e abraça o inventivo na maneira como apresenta e representa o dom de seu protagonista, transmitido ao espectador unicamente através dos jogos de câmera, da montagem e da performance de O’Connor. Há, na verdade, em toda a linguagem do filme uma condução majoritariamente discreta que, quando chama a atenção para si mesma, proporciona alguns dos mais belos planos (e das melhores sequências) que a cineasta elabora no conjunto. Isso por vezes ocorre, é verdade, nos momentos de maior carga emocional, mas também pode ser conferido nos lampejos de leveza e, mesmo, de humor – e é um grande respiro adentrar a projeção de uma fita do dito “circuito de arte” e se deparar com uma fita que sabe trabalhar o humor mesmo numa trama que não necessariamente apele para o mesmo. Os quinhões de A Quimera em que a vida de seus personagens corre solta, com o bando de vagabundos iluminados escavando as covas, fugindo apressada e espirituosamente da polícia, bebendo, indo a festas, se divertindo, sentindo o desenvolver de suas tensões romântico/sexuais, são verdadeiras joias que só fazem deixar o espectador ainda mais apaixonado pelo longa (caso suas demais qualidades não lhes sejam suficientemente apelativas para tal).
Para os não familiarizados anteriormente com a filmografia de Alice Rohrwacher (que dirigiu o bem-sucedido Lazzaro felice, um dos filmes mais comentados em certos círculos da cinefilia no ano de 2018), A Quimera mostra-se um bom ponto de partida que deixa o público querendo mais. Mais fitas de Rohrwacher e mais performances de O’Connor.
LA CHIMERA (2023), dir. Alice Rohrwacher [trailer].
Sinopse: Arthur é um jovem arqueólogo que se envolve com um grupo de ladrões de túmulos repletos de relíquias da era etrusca, que se dedica à venda desses objetos ao mercado de arte. Para este grupo, Quimera é o desejo pelo dinheiro fácil, já para Arthur se parece com a mulher que ele perdeu, Beniamina. Para encontrá-la, ele desafia o invisível e procura por toda parte em busca de um caminho mitológico para a vida após a morte.
Duração: 133 minutos.
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Referência ao romance The Dharma Bums, do escritor norte-americano Jack Kerouac, que no português brasileiro – sob tradução de Ana Ban – tornou-se Os Vagabundos Iluminados.