RECORTES CRITICA: Kasa Branca (2025)
Crítica do novo filme de Luciano Vidigal, por Igor Nolasco.
Um dos princípios que orienta, de forma mais direta, a convivência em diversas sociedades africanas é o da coletividade. Entre os habitantes de um bairro, um vilarejo, uma cidade, há de ser prezada uma cumplicidade como a de uma família consanguínea, na qual imperam as boas relações e o desejo de que todos possam contornar os empecilhos com a ajuda de uma mão amiga. Trata-se menos de uma utopia e mais de uma camaradagem que precede e prescinde o individualismo, a frieza e o jogo de interesses que norteiam as relações interpessoais no capitalismo, e que portanto pode parecer, a um observador de menor sensibilidade, naïf ou incompatível com a correria do século XXI. Há quem diga que nós, brasileiros, herdamos um pouco desses princípios comportamentais através do componente africano de nossa formação étnica nacional; já foram publicados volumes e mais volumes no campo da sociologia dedicados a analisar essa questão. Fato é que, na atualidade, encontramos em maior medida nas periferias esse senso de comunidade. E é isso que vemos em Kasa Branca, longa dirigido por Luciano Vidigal (um dos cineastas revelados pelo grupo Nós no Morro, que participou de projetos fílmicos como 5x Favela — Agora Por Nós Mesmos) que rodou pelo circuito de mostras e festivais e chegou às salas de exibição comerciais na última semana.
Com ação centrada na Chatuba de Mesquita, Baixada Fluminense, o filme acompanha o adolescente Dé, que dedica sua vida quase integralmente a supervisionar e cuidar de Almerinda, sua avó enfraquecida pelo mal de Alzheimer. Sem a possibilidade de dedicar-se a um emprego, tendo o aluguel atrasado e encarando todas as dificuldades cotidianas advindas da vida na periferia, Dé sente-se solitário e sobrecarregado com o fardo das responsabilidades que recaem sobre si em tão tenra idade. A ajuda vem do amparo vigilante de seu círculo social, que zela pelo bem-estar de Dona Almerinda dos menores gestos à ajuda material possível. Dois amigos mais próximos formam uma espécie de trio junto ao personagem principal, chegando a extremos como o de invadir uma farmácia à noite para pegar remédios ou carregar a idosa no colo para atravessar uma trilha.
Há um componente particularmente interessante na participação do rapper L7NNON, que interpreta a si mesmo na história e aparece como um velho conhecido de Dé & companhia, mantendo proximidade e respeito por suas raízes mesmo após deslanchar em uma carreira de sucesso. A princípio, sua aparição na fita pode parecer um Deus Ex Machina oportuno, uma vez que se dá quando a cobrança do aluguel do protagonista mostra-se implacável e o músico, compadecido, acata a ideia de promover um show beneficiente para arrecadar fundos a Dé e Dona Almerinda. Mas há mais coisas em jogo aqui, dentro da perspectiva afro-brasileira da coletividade, e que vão de encontro a uma frase feita conhecidíssima de uns tempos pra cá: “favela venceu”. Não é de hoje que artistas oriundos da periferia vem colocando essa vitória em xeque. Marcelo D2 chegou a gerar alguma repercussão, no ano passado, quando atestou que achava “uma armadilha esse papo de que a favela venceu. A favela não venceu, a favela ainda está passando fome [...]. Sem saneamento básico, sem saúde. A gente ainda tem que lutar muito por isso”1. A vitória monetária e a melhora de condições de vida tendem a ser individuais, enquanto a coletividade costuma permanecer na mesma situação. Na história esquematizada por Luciano Vidigal, L7NNON topa utilizar sua influência para dar suporte aos seus, em uma demonstração de solidariedade que está muito mais próxima das tradicionais sociedades africanas do que do cada-um-por-si-e-Deus-por-todos que impera sob o capital. A casa onde Dé e sua avó moram de aluguel é repaginada como a Kasa Branca, espécie de espaço cultural que abriga a festança capitaneada pelo rapper. É o triunfo da coletividade e a celebração do rap, do funk, do graffiti e de outros elementos que caracterizam o que vem sendo, cada vez mais, chamado de “cultura da quebrada” (ainda que o termo possua uma raiz algo paulistana que talvez cause um estranhamento quando empregado à realidade do estado do Rio de Janeiro).
Kasa Branca, diga-se de passagem, é um filme que (desde o princípio) mostra-se orgulhoso em ressaltar suas características distintamente afro-brasileiras, seja através de cantos religiosos, rezas ou música popular. A inserção do fonograma de Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara cantando Sonho Meu em dueto, com a voz áspera e ancestral de Clementina preenchendo o som do cinema enquanto os sonhos de vida e a vida de sonhos de Dé são expressados através do olhar e da postura do ator Big Jaum, diz tudo — e é um dos grandes momentos do conjunto, síntese de boa parte do longa.
Co-produção entre a produtora carioca Cavídeo e a Globo Filmes (e contando, portanto, com a participação de um ou outro ator conhecido aos espectadores da emissora), o novo trabalho de Vidigal se insere em uma linhagem de fitas que buscam subverter o favela movie dos anos 2000 e contribuir para um repertório diverso de narrativas periféricas. Em um plano estético e discursivo, é possível ler Kasa Branca enquanto parte de um mesmo projeto que compreende, por exemplo, A Festa de Léo (sobre o qual já escrevemos por aqui), longa que foi exibido em circuito no ano passado e também tem sua gênese no grupo Nós no Morro. Algumas presenças cênicas acabam contribuindo para esse tipo de leitura: atores tradicionalmente associados ao coletivo, como Roberta Rodrigues e Babu Santana, figuram nas duas fitas supracitadas e empregam a elas um caráter celebratório das décadas de história do projeto cênico/cinematográfico que emerge das favelas cariocas.
Um pequeno filme cheio de coração, Kasa Branca não oferece grandes reviravoltas narrativas ou maiores surpresas nesse sentido: sua história é simples e, de certa forma, corre quase que completamente dentro do esperado. O que se sobressai no conjunto é a sensibilidade temática e estética ao se debruçar sobre elementos que caracterizam a vida na periferia fluminense, dentro dos dilemas enfrentados por Dé, Almerinda, seus amigos e todos aqueles a seu redor: o atendimento médico precarizado, a falta de grana, o afastamento de um pai ausente, os dilemas das mães solo, a truculência policial, o distanciamento geográfico da zona sul carioca, o Sol duro e implacável sobre o concreto (em Kasa Branca, sempre sentimos que está fazendo um calor absurdo, mesmo que essa questão poucas vezes seja mencionada verbalmente). A ênfase nos trens pesados que correm sobre os trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil, e deslocam diariamente milhares de moradores da Baixada Fluminense em direção ao Rio, dá a dica de que o morador da Baixada está sempre em trânsito — como o próprio personagem Dé, durante os momentos derradeiros da vida de sua avó, também encontra-se em um processo de transição, sendo nesse sentido basicamente um protagonista de coming of age possível para uma realidade tão diferente do mundinho cor-de-rosa dos filmes hollywoodianos. O que fica de Kasa Branca para nós, espectadores, é a beleza existente no companheirismo daqueles que, juntos, são mais fortes para enfrentar os percalços do mundo-cão.

KASA BRANCA, dir. Luciano Vidigal.
Sinopse: Dé é um adolescente negro da periferia da Chatuba, no Rio de Janeiro, que recebe a notícia de que a avó, Almerinda, está na fase terminal da doença de Alzheimer. Com a ajuda dos dois melhores amigos, Adrianin e Martins, o garoto enfrenta o mundo para aproveitar os últimos dias de vida da idosa.
Hoje nos cinemas.
Duração: 1h 35m. Assista ao trailer.
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Em entrevista para a revista VEJA, em setembro de 2024: https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/marcelo-d2-critica-ostentacao-no-rap-a-favela-nao-venceu