RECORTES CRITICA: Greice (2024)
Crítica do grande vencedor do 13º Festival Internacional de Curitiba, por Igor Nolasco.
“Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia
É brasileiro, já passou de português”Noel Rosa, Não Tem Tradução
O griot burkinabé-maliano Sotigui Kouyaté costumava dizer, citando um ditado da sabedoria popular da África Ocidental, que “existe a sua verdade, a minha verdade e A Verdade”. Essa máxima cai como uma luva para o espectador que adentrar a sessão de Greice, novo longa do cineasta cearense Leonardo Mouramateus que estreia em circuito no dia 18 de julho, após circular por festivais como Rotterdam e Olhar de Cinema.
A co-produção com Portugal, que reflete a experiência de Mouramateus enquanto brasileiro radicado no país europeu (como outros de seus filmes também fazem), acompanha a personagem titular – uma cearense boa de lábia que estuda na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa – enquanto ela precisa lançar mão de distorções, lorotas, pequenas e grandes mentiras para desbaratar uma série de problemas que vai surgindo em seu caminho, parcial ou de todo causados por seu jeito ensaboado de ser. Algumas situações são repassadas e revisadas múltiplas vezes, sob perspectivas diversas, quase que sob um efeito Rashomon1 calcado nas justificativas e evasivas de Greice. Amandyra, que interpreta a personagem titular (no que é sua estreia como protagonista de longa-metragem), é uma estrela: exala carisma enquanto tapeia e enrola uns e outros (incluindo, por vezes, o público), mas ainda assim possui dilemas e vontades legítimos; se utiliza da malandragem para superar apertos da vida de imigrante brasileira na Europa, para desapartar relacionamentos mal resolvidos e mesmo para lidar com abacaxis familiares. É uma personagem palpabilíssima, que parece escrita (e encenada) com o coração.
Em todo o universo diegético esquematizado por Mouramateus, impera um certo carinho por aspectos cotidianos, pessoas e espaços da cidade de Fortaleza. Dos hotéis turísticos aos campeonatos de dança organizados na noite; das discussões sobre cardápios de lanchonete ao aconchego da casa familiar, Greice percorre a cidade através de uma visão toda particular, construindo um panorama próprio que é demarcado, em tela, pelos tipos com quem a protagonista convive. São personagens que por vezes caem na comicidade – e Greice, de fato, é uma comédia – sem assumirem no entanto o papel uno de “alívio cômico”. Todo o elenco de apoio, tanto no Brasil quanto em Portugal (e é um filme dividido entre esses dois espaços, com a cabeça num lugar e as raízes em outro), é selecionado a dedo e trabalha bem. Destacam-se o músico/ator/dançarino Dipas e a performer/atriz portuguesa Isabél Zuaa, que vem construindo interessante carreira no cinema brasileiro ao longo dos últimos dez anos e pontua Greice com uma participação fora da curva, no papel da cantora Clea.
É bom frisar que, apesar de dividir sua minutagem, sua personagem e sua narrativa entre dois continentes, não se trata de um filme desterritorializado. Entendemos muito bem (e muito rápido) como são a Lisboa e a Fortaleza do microcosmo vivido por Greice; quem são suas amizades, qual é o seu dia a dia em cada um desses lugares, como ela lida com esses espaços e como se sente, enquanto pessoa, neles dois. Talvez não seja justo dizer que há uma separação bem demarcada – até porque narrativa e estrutura não são partidos por uma fissura quando vão de Portugal para o Brasil – mas observar o comportamento de Greice e o que ela faz nessas duas cidades nos faz entender melhor as facetas de sua personagem – a trapaceira e mentirosa compulsiva; a estudante brasileira em Portugal; a imigrante que percebe os abismos sociais no país que escolheu para estudar; a jovem que se sente constrangida em abrir-se sobre suas dificuldades com a mãe, com quem conversa por vídeo-chamada; a amada e a amante (e na fita de Mouramateus, sexo e sexualidade encontram seu espaço de forma muito natural). A Greice de Amandyra é fascinante, e nos faz aguardar com interesse seus próximos papéis (em trabalhos de Mouramateus, mas não só).
No que se refere a estrutura e linguagem, Greice surpreende por certa convencionalidade no domínio da forma. Mouramateus, premiado curtametragista que vem desenvolvendo um trabalho no formato do longa desde Antonio Um Dois Três (2017), dirige de forma inventiva, porém segura, e entrega um trabalho acessível e com potencial para bom lastro no circuito comercial (que é sempre impiedoso com produções brasileiras, num geral relegando-as a uma ou duas semanas em cartaz). Não que lance mão de uma abordagem tradicional e básica – em alguns momentos, o filme parece até mesmo se enveredar pelo camp, mas totalmente desprovido de cinismo; e em determinadas sequências a serem lidas sob essa ótica, Greice atinge alguns de seus momentos mais memoráveis ou simplesmente mais belos. Penso no trabalho tardio de Carlos Reichenbach (Garotas do ABC e Falsa Loura, especificamente), mas a comparação é insatisfatória, até porque Reichenbach e Mouramateus são cineastas em tudo diferentes. É caso de ver para crer.
Leve e divertido, produção com pegada mais comercial vinda um cineasta com assinatura já bem definida, Greice pode marcar uma guinada de abordagem para Leonardo Mouramateus ou, a longo prazo, mostrar-se um breve “desvio” em sua filmografia (como Boca de Ouro para Nelson Pereira dos Santos, etc). De todo modo, é um filme revigorante e diferente – tanto do grosso dos longas brasileiros que chegam ao “circuito alternativo” nesses últimos anos quanto do formato humorístico-semitelevisivo bancado pelos grandes conglomerados de comunicação, este um dos poucos tipos de fita brasileira que vinga e faz público no circuitão. Greice tem potencial para mobilizar e conquistar parte desses espectadores (mesmo que não busque, necessariamente, o apelo popular fácil), e consegui-lo seria bom para o atual estado das coisas em nossa cinematografia.
GREICE (2024), dir. Leonardo Mouramateus [trailer].
Sinopse: Greice é uma jovem estudante de artes de 22 anos que vive em Lisboa e se apaixona por um homem misterioso. Responsabilizada por um estranho acidente que ocorre na festa de recepção dos calouros, ela é obrigada a retornar a Fortaleza, sua cidade natal.
Duração: 110 minutos.
Obrigado por ler esta crítica da Recortes de Película!
A Recortes tem como interesse fornecer para sempre seu conteúdo de forma gratuita. Se você aprecia o nosso trabalho, considere tornar-se um inscrito pago pelo Substack ou fazer uma contribuição individual.
Também estamos no Instagram e no Twitter!
Recurso narrativo nomeado em alusão ao filme Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, que diz respeito a diversos personagens oferecendo versões contraditórias sobre uma mesma história.