RECORTES CRITICA: Ferrari (2023)
Crítica do projeto dos sonhos do diretor Michael Mann, por Igor Nolasco.
Michael Mann é desses cineastas americanos veteranos (como, guardadas as devidas proporções, Clint Eastwood e mesmo Martin Scorsese) cuja obra, vista por um periscópio, pode oferecer – entre tantas coisas – um estudo possível sobre a masculinidade. Podemos encontrar perspectivas sobre a vivência masculina, a postura do homem na sociedade, as demandas próprias ao gênero, os papéis impostos a ele dentro da estrutura familiar, seus dilemas, defeitos, sociabilidades e sinas, de uma forma ou de outra, em obras tão distintas quanto Caçador de Assassinos (1986) ou Fogo Contra Fogo (1995). Não é uma surpresa, portanto, ver que o mais novo longa de Mann, Ferrari, também se envereda por essa perspectiva. O filme, exibido no Brasil durante a Mostra de Cinema de São Paulo de 2023, chegou ao circuito comercial do país nesse primeiro trimestre de 2024.
Há todo um peso na interpretação dada pelo ator Adam Driver a seu personagem Enzo Ferrari, piloto aposentado e empresário do ramo automotivo. Naturalmente alto e de fisionomia dura, Driver imprime em sua figura algo grave a postura de um protagonista de tragédia shakespeariana. O panorama que nos é apresentado de fato possui os dois pés no trágico: à beira da falência, Ferrari vê sucessivos pilotos de corrida por ele empregados sendo mortos em acidentes, e precisa ganhar competições importantes para que seus negócios continuem se mostrando viáveis. Sua vida conjugal está em constante estado de pé de guerra, uma vez que sua esposa, Laura (sócia-fundadora, junto a ele, da companhia que leva o sobrenome da família em seu emblema), sabe de sua infidelidade e sua amante, Lina, cobra-lhe o reconhecimento legal do filho ilegítimo que esconde do mundo. No filme, esses dois ambientes, essas duas esferas – profissional e domiciliar – são trabalhadas com fumos de melodrama, enquanto o personagem titular atravessa esses ambientes tendo que equilibrar-se sobre gelo fino, com um peso aterrador nas costas. Suas decisões equivocadas, sua teimosia e obstinação, suas mentiras e sua gana, o tornam como que, para utilizar certa expressão cunhada por Nelson Rodrigues, um mártir em casa e na rua.
É oportuna a evocação de Nelson Rodrigues, pois o Enzo Ferrari concebido por Mann e Driver mostra-se um personagem rodrigueano por excelência. A definição “mártir em casa na rua”, afinal, foi criada para intitular um conto, da série A Vida Como Ela É, no qual um adúltero precisa atravessar o calvário de, todos os dias, jantar duas vezes – na casa da amante e na da esposa, respectivamente. Abunda, nos textos do escritor, o arquétipo do sujeito trágico de masculinidade debilmente exaurida por suas vulgaridades, que sucumbe ante o próprio pecado, cuja danação vem à galope quando percebe que há de arcar com as consequências de seus atos, de seus desvios comportamentais, do saciar de suas impulsividades.
Não cabe aqui discutir a carga moralista dos escritos de Nelson Rodrigues (escritor, como se sabe, altamente moralista e de visão assumidamente conservadora – o que não lhe subtrai a qualidade literária), mas sim apontar um elemento-chave que une sua perspectiva enquanto ficcionista àquela que consta em Ferrari (como não podia deixar de fazer-se presente, sendo uma história italiana): a culpa católica. Enzo visita todos os dias o cemitério onde está enterrado seu primeiro filho, falecido após padecer por uma doença e, até aquele momento, seu único herdeiro legítimo; na propriedade que comprou secretamente para esconder a amante e a criança bastarda, é visível o pesar e o constrangimento que exala ao performar uma paternidade inevitavelmente distante e ao lidar com Lina, escanteada de sua vida porém inexoravelmente ligada a ele pelo filho. Esposa e amante o tratam com diferentes tipos de frieza; mesmo o amor e o desejo sexual partilhado entre Ferrari e as duas mulheres não subtraem dessas relações um ar pusilânime e trágico. Enzo está sempre sorumbático; em sua visão, falhou como homem de família, como pai e como “provedor”. Não se encaixa nas delimitações comportamentais de sua grei, sendo, portanto, desviante dos dogmas de sua fé. A mãe de Ferrari, figura pouco explorada pelo filme, mas que mostra-se essencial em alguns momentos pontuais, enfrenta a nora traída, sem pestanejar, quando esta descobre os segredos do marido: “ele tem direito a um herdeiro”, diz, secamente. A inflexibilidade da visão de mundo tradicional e masculinista impõe-se sobre a família de Ferrari mesmo após este fragmentar e vilipendiar a estrutura familiar católica. É, portanto, uma obra que não apenas versa sobre a crise desse modelo religioso-familiar-relacional, mas sobretudo sobre a crise desse modelo de masculinidade (como outros trabalhos de Mann também o são de certa maneira, conforme discutido anteriormente) que rói o coração de Enzo Ferrari por dentro enquanto, por fora, ele posa para os fotógrafos e jornalistas com seus óculos escuros, seus ternos bem alinhados e com os carros de luxo de sua própria fabricação – tudo isso, as vestimentas, o sucesso do self-made man, os veículos de ponta, símbolos estereotípicos do “macho alfa”. Mesmo que, por debaixo dos panos, a fábrica de carros desse “macho alfa” esteja prestes a fechar as portas.
Driver tem seu trabalho um tanto facilitado ao contracenar com um bom elenco de apoio: Mann extrai o que há de melhor em atores como Shailene Woodley, Patrick Dempsey e o brasileiro Gabriel Leone, encarregado de viver um jovem piloto que torna-se a grande aposta de Enzo Ferrari. Penélope Cruz, que vive a esposa Laura, é a verdadeira interlocutora do protagonista durante toda a narrativa, e traz suas reivindicações com a palpabilidade necessária para que sintamos o efeito das ações de Ferrari durante a trama e, mesmo, anteriores ao recorte abordado pelo filme. Não assume o papel subalterno ou ilustrativo que comumente é relegado às cônjuges de “homens difíceis” em produções de cunho biográfico – o que, inclusive, é um ponto que serve para apontarmos que Ferrari não parece se preocupar, ao menos durante boa parte de sua minutagem, com os expedientes usuais de uma biografia cinematográfica. Isso é ótimo – o que vemos é um filme de Michael Mann, e não um filme sobre Enzo Ferrari. Isso talvez frustre aqueles legitimamente interessados em travar um conhecimento panorâmico com a história do magnata, mas provavelmente satisfará aqueles que estão ali pelo bom cinema que Mann oferece (como, mal comparando, certo público que desejava saber mais sobre Leonard Bernstein frustrou-se com a estrutura elíptica e a abordagem pessoalíssima empregados por Bradley Cooper em Maestro – mesmo que Cooper ainda precise comer muito arroz com feijão para poder ser colocado na mesma frase que Mann).
Projeto longamente gestado por seu diretor1, Ferrari parece muito mais interessado em trabalhar os dilemas humanos e interpessoais de seu personagem principal do que em ser, meramente, uma fita sobre corridas (sê-lo, por si só, também não seria nenhum demérito). Um espectador que adentrar a sessão esperando um filme de ação convencional, ou mesmo um drama biográfico calcado em um personagem real, pode acabar se surpreendendo ante o ritmo e a complexidade de algo que está muito mais próximo de um melodrama clássico. Mesmo nas sequências onde o que ocorre no primeiro plano é a disputa automobilística, a carga emocional exterior às corridas e nelas depositada é o que está verdadeiramente em jogo – é o que realmente torna a sequência que gira em torno do circuito Mille Miglia algo de tirar o fôlego, somada ao senso de ritmo e à habilidade com a câmera próprios do cineasta. Os que preocupam-se mais com o uso da computação gráfica em determinados momentos – como os tantos que comentaram sobre isso pelas redes sociais, na ocasião do lançamento do filme no Brasil – do que com o uso genial que Mann faz da perspectiva, do som e até de recursos tão banais como a boa e velha câmera lenta, acabam por deixar passar uma verdadeira aula de como orquestrar uma boa sequência de ação, onde a precisão da técnica, a visão artística e o peso narrativo se unem sob a batuta de um cineasta que é, hoje, um dos maiores mestres vivos do gênero – para além de ser um dos poucos em atividade na indústria americana a conseguir se utilizar do filme de ação para produzir uma obra verdadeiramente tridimensional.
FERRARI (2023), dir. Michael Mann [trailer].
Sinopse: Durante o verão de 1957, a falência paira sobre a empresa que Enzo Ferrari e sua esposa Laura construíram dez anos antes. Ele decide apostar tudo na icônica Mille Miglia, uma corrida automobilística de longa distância pela Itália. No processo, Enzo redefiniu a ideia do carro esportivo italiano de alto desempenho e deu origem ao conceito da Fórmula 1.
Duração: 131 minutos.
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Ao Hollywood Reporter, Mann alegou ter passado mais de 30 anos trabalhando no filme, desde sua concepção inicial até seu corte final. Entrevista do diretor ao jornalista Jon Alain Guzik (em inglês).
Ao ler sobre a RECORTES Crítica de "Ferrari" de Michael Mann, me senti perante uma crônica cinematográfica, digna de um capítulo em um FUTURO livro sobre cinema e diretores. A profundidade e estética do texto espelham a maestria de Mann, promovendo uma experiência que transcende a simples observação, nos mergulhando em um conjunto de narrativas e perspectivas impactantes que nos incitam a assistir ao filme sob uma nova luz.