Em dado momento da projeção, Ronaldo fica sabendo que Wellington está prestes a completar os dezenove anos de idade. “Nem vou poder mais te chamar de ‘Baby’”, comenta, em algo como um lamento. O outro, com seu jeito meio quietão, nega: o apelido carinhoso tornado “nome de guerra” há de perdurar, mesmo após o soprar das velinhas. Novo longa de Marcelo Caetano (diretor de Corpo Elétrico, que circulou pelos cinemas brasileiros em 2017-2018), Baby encapsula basicamente esse díptico existente dentro das significações atribuídas ao pseudônimo do personagem titular: a vida pessoal e o trabalho, o lazer e o corre, o amor e o sexo, o abandono e a construção de novas estruturas familiares.
Existem coisas que estão em jogo e que são abordadas, em maior ou menor grau, desde o início da projeção, quando conhecemos o protagonista: assim que atinge a maioridade legal, Wellington ganha a rua após alguns anos detido na Fundação Casa (antiga FEBEM, reformatório para menores). Ao chegar no prédio onde moravam seus pais, descobre que eles mudaram-se sem deixar rastro, recado ou telefone de contato. Vagando sozinho pelas ruas de São Paulo, sem um tostão no bolso, é hostilizado ao tentar dormir em estações de metrô e acaba recorrendo a velhos amigos da cena queer paulistana para tentar se virar. Só nesses primeiros minutos, já temos em pauta: 1) a evasão familiar — Wellington é renegado por pai (ex-policial militar) e mãe por sua sexualidade e sobretudo por seu status de criminoso (é posto que o garoto foi preso na Fundação Casa após atear fogo em um colégio, causando algumas mortes); 2) a dificuldade inerente ao processo de ressocialização a alguém saído de uma condição penal, aqui acentuada pela vulnerabilidade do abandono. Wellington & companhia flanam pela noite aplicando pequenos golpes, e é quando adentram um cinema pornô para furtar um celular que o jovem acaba topando pela primeira vez com Ronaldo, homem mais velho que trabalha fazendo programa.
Os dois formam um laço estreito afetivo e também profissional; Ronaldo, que vive separado da ex-esposa e do filho, abre sua kitnet para que o jovem more com ele. Os dois passam a trabalhar juntos na noite, fazendo programa e revendendo drogas. Na necessidade de cunhar um “nome de guerra”, Wellington logo impõe seu alter-ego “Baby”. Aí começam a surgir pautas que o filme se furta de trabalhar com maior desembaraço, como na própria temática do trabalho sexual, extremamente complexa por si só, ainda que já retratada ad infinitum pelo cinema como arte. Em poucos momentos sentimos a palpabilidade dessa rotina: logo após entrar para o ramo, Baby se sente contrariado diante de um voyeur e abandona abruptamente o serviço; mais adiante, sentindo-se sufocado pela quantidade de trabalho imposta por Ronaldo, presença sempre ostensiva, ele se desgarra para poder curtir com amigos. No mais, é um filme que tem pouco a dizer sobre trabalho sexual, e por vezes parece até um tanto acanhado em fazê-lo. Não faltam bons exemplos, no cinema brasileiro, de obras que abordam problemáticas no que se refere à profissão mais antiga do mundo — atreladas à experiência feminina. Nessa leva do novíssimo cinema brasileiro na qual a vivência queer passa a ser explorada mais a fundo, por vezes há ainda certo pudor em retratar todos os tons de cinza da prostituição masculina (já em filmes como Tinta Bruta, de 2018, o mundo dos camboys era tematizado enquanto esbarrava em questões de classe, etc) — talvez com o receio de colocar lenha na fogueira de certos estigmas. Baby lida da maneira mais delicada possível com isso e com outros assuntos que poderiam ser vistos como controversos, como a diferença de idade entre seus dois personagens principais (pode se argumentar que essa discrição discursiva talvez seja melhor do que demagogia ou fator-choque). Há, sim, uma grande constância do corre: Wellington e todos aqueles que o rodeiam estão sempre atrás de um cascalho, de formas mais ou menos convencionais: do sexo pago ao ofício de cabelereira, do repasse de cocaína à performance artística em transporte público. São Paulo é mundo-cão, “a selva de pedra que esmaga os humildes demais”1, etc; todos estão sempre se mexendo para garantir o pão de cada dia. A partir do momento em que o protagonista é tratado como um vagabundo e acordado de seu sono ao relento por um meganha na base do cassetete, ele logo precisa ir se defendendo.
Não sendo, portanto, um filme necessariamente sobre a condição da prostituição, Baby é um coming of age que perpassa por ela. Seu arco narrativo é pautado no amadurecimento pessoal desse personagem em meio às idas e vindas com Ronaldo, enquanto outras coisas vão sendo administradas pelo caminho. Nisso, Marcelo Caetano parece particularmente interessado em estabelecer questionamentos ao tradicional modelo familiar nuclear. Quando já há maior nível de intimidade e cumplicidade entre o casal principal, Wellington é levado por Ronaldo para conhecer seu filho, sua ex-mulher e a nova esposa desta. Apesar da separação, apesar da sexualidade e apesar dos apesares, vemos aquela reconfiguração da estrutura familiar funcionando muito bem: não há hostilidade dentro daquele ambiente, que sempre parece muito leve e acolhedor, mesmo para Baby (há toda uma sequência dedicada a mostrar todos os personagens envolvidos nesse espaço cuidando dos cabelos uns dos outros, em fila indiana, síntese visual dessa cooperatividade e cumplicidade que norteia o funcionamento de um núcleo familiar atípico). Isso acaba preparando o terreno para o tema da “found family”: enquanto trampa com Ronaldo em troca de alguns cobres, Baby continua procurando pistas para descobrir o paradeiro de seus pais. Com esforço, consegue localizá-los e até faz uma visita, mas a decisão de seu pai (nunca visto em tela) em manter o afastamento é taxativa. Wellington acaba descobrindo que família pode ser os amigos que fazemos pelo caminho, e termina o filme em algo como uma dinâmica familiar com o grupo de amigos que inicialmente o havia recebido em São Paulo após sua alforria da Fundação Casa. Há algo bonito nesse eixo discursivo, mas a real força de Baby talvez esteja, mesmo, na maneira como justapõe seus dois personagens centrais.
A dinâmica entre Wellington e Ronaldo é basicamente a espinha dorsal de Baby, e de certa forma lembra um pouco os papeis principais de outro filme que há pouco estava em cartaz, o Queer de Luca Guadagnino (já escrevemos sobre ele por aqui, vale lembrar): um homem mais velho que em muito se entrega, e um mais novo que por vezes, ensaboado, impõe-se enquanto espírito livre. Os atritos entre os dois são causados por essa diferença de personalidade: eles chegam a se separar (em um período no qual Baby passa a viver com outro homem, que conhecera numa boate), reatam, brigam e continuam trabalhando, culminando em uma emboscada envolvendo os traficantes para os quais a dupla trabalha e que Wellington vê como traição. Ronaldo, mais experiente, com contas a pagar e uma família para a qual precisa botar comida na mesa, possui maior senso de responsabilidade, enquanto o mais novo é guiado por impulsividade e imprevisibilidade. Possivelmente por causa da interpretação por vezes contida e taciturna de João Pedro Mariano (que não se furta, é verdade, de eventuais explosões quando o texto pede), ocasionalmente é difícil ler Baby enquanto personagem, saber o que está se passando por sua cabeça, entender a lógica por trás de suas escolhas. Na sede de viver da juventude, não é sempre que decisões são orientadas por lógica, isso é fato, mas Wellington se torna alguém difícil de se relacionar por parte do espectador. Está sempre na pior, mas pula de uma situação a outra como se isso não fosse nada. Sempre quieto, muitas vezes com a atenção direcionada ao telefone celular (um traço geracional forte, bem colocado por Marcelo Caetano e pelo ator), ele vai tocando a vida enquanto dorme de favor em uma ou outra casa, usando roupas emprestadas ou dadas e ganhando as ruas para trabalhar. Quando perde tudo por imprudência, recomeça sem sobressaltos. A única parte do filme onde parece haver algum senso de urgência, algum risco, é na supracitada sequência do sequestro — não à toa, uma das mais bem conduzidas em matéria de encenação e de dramaturgia em todo o longa. A resolução, na base da “carteirada” com um apelo nominal ao pai de Baby, é um tanto anti-climática, mas bem condizente com a República do “Você-sabe-com-quem-está-falando” do Brasil.
Visualmente falando, um filme que em muito se beneficia de ser visto em tela grande: a direção de Marcelo Caetano não chama tanto a atenção para si mesma, mas sabe conduzir uma decupagem cuidadosa e alguns planos memoráveis quando quer. Sobressaem-se os planos mais abertos, nas diurnas que captam um pouco das ruas de São Paulo e nas quais os personagens circulam pequeninos pelo quadro, como formigas caminhando em meio a uma toalha de mesa; não há muita novidade nessa representação visual para a insignificância do indivíduo em meio a uma grande metrópole, mas o cineasta chega a fazer algo que foge do protocolar (e os planos que isolam Ronaldo e Wellington em uma locação, deixando a intimidade dos personagens respirar, estão entre os grandes momentos da fita). Na mesma toada, ainda que não lance mão de vermelhos-almodóvar e similares, Baby lida muito bem com suas cores, o que parece ser uma particularidade para certos expoentes da leva atual do cinema brasileiro que lida com a temática queer, ainda que não seja a norma para a produção nacional que efetivamente chega em circuito como um todo (ano após ano, vemos por aí uma porção de filmes que parecem não ter sido devidamente colorizados na pós-produção, com aquele visual lavado que em nada agrega à proposta estético-temática das obras para além de lhes emprestar um clima preguiçoso e batido de sobriedade).
Baby é um filme simpático que dialoga com toda uma geração de cineastas e de produções que, de uns dez ou quinze anos pra cá, vem colorindo a cinematografia brasileira com outras vivências. Nesse sentido, ele em muito se beneficiaria — e seria um filme ainda mais interessante — caso se permitisse ser mais solto. De vez em quando, obra e protagonista se parecem: demasiadamente rígidos enquanto rodeados de um contexto pulsante, com o qual poderiam se comunicar com maior desenvoltura.

BABY, dir. Marcelo Caetano.
Sinopse: Após deixar um centro de detenção para menores, Wellington se encontra sozinho e à deriva pelas ruas de São Paulo, sem notícias de seus parentes e sem recursos para começar uma nova vida. Depois de visitar um cinema pornô, ele conhece Ronaldo, que o ensina novas formas de sobreviver.
Hoje nos cinemas.
Duração: 1h 47m. Assista ao trailer.
Obrigado por ler esta edição da Recortes!
✂️ Siga a gente no Instagram e fique por dentro de todas nossas postagens!
✍️ Tem interesse em escrever para a Recortes? Fale com a gente por e-mail ou DM.
Para continuarmos oferecendo nosso conteúdo gratuitamente, sua ajuda é fundamental. Se você aprecia o nosso trabalho, considere tornar-se um assinante ou compartilhar esta newsletter com amigos.
Racionais MC’s, “Sou + Você”.