RECORTES CRITICA: Armadilha (2024)
Crítica do novo filme de M. Night Shyamalan, por Igor Nolasco.
Como uma boa milhar no jogo do bicho, Josh Hartnett está cercado por todos os lados. A partir do momento em que é revelado, desde o trailer, que o protagonista de Armadilha, um atencioso pai de família chamado Cooper, é também “O Açougueiro”, assassino que está sendo procurado pela polícia em meio ao show da cantora pop Lady Raven, o espectador pode se pegar pensando com seus botões: “certo, e agora?”. Bom, agora temos um dos filmes nos quais M. Night Shyamalan mais se empenha em deixar fruir uma de suas principais qualidades enquanto cineasta: a de ser um artista cujo trabalho se ampara fundamentalmente na quebra de expectativa. Já nos anos 2000, esquetes de programas televisivos americanos caçoavam dos plot twists constantes em seus trabalhos; uma visão humorística, sim, mas também um tanto quanto primária. Armadilha chega ao público na esteira de uma sequência de obras, desenvolvidas ao longo dos últimos anos, nas quais Shyamalan vem conduzindo um cinema eminentemente despreocupado em fazer concessões.
Pelo menos desde Fim dos Tempos havia quem apontasse que os diálogos, nos roteiros de Shyamalan, não seriam verossímeis ou espontâneos; esse tipo de reclamação voltou à tona na ocasião do lançamento de Tempo. Pois bem: em Armadilha ele dobra a aposta, e aqueles que não entenderam até agora que trata-se meramente de uma escolha estilística, e que um diálogo, para ser funcional aos propósitos de um determinado filme, não precisa ser necessariamente naturalista ou coloquial, não irão entender nunca. Basicamente o mesmo ocorre com as viradas narrativas e as quebras de expectativa: aqui, Shyamalan não as utiliza como um fim, mas muito mais como um meio. Nesse sentido, é seu filme mais hitchcockiano: desde o começo, o protagonista vivido por Hartnett vê o cerco gradualmente se fechando ao seu redor, e precisa pensar rápido e lançar mão de uma série de improvisos para ganhar tempo e, eventualmente, tentar escapar da arapuca. Raramente há um respiro, e quando uma das saídas boladas pelo Açougueiro parecia estar se provando minimamente bem sucedida, logo algo ou alguém bota água em seu chope, fazendo com que o assassino precise recalcular a rota. Shyamalan conduz sua narrativa como um jogador que, sem medo de arriscar, pede ao crupiê mais uma carta, e mais uma, e mais uma, na mesa do vinte-e-um.
Aclimatizar essa narrativa num show de um fenômeno pop adolescente foi uma boa sacada: não apenas captura parte do espírito do tempo vigente na indústria musical, como cria um jogo no qual os próximos passos de Cooper precisam necessariamente se aproveitar de certos recursos próprios ao espaço e contornar empecilhos proporcionados pelo mesmo. Seja instrumentalizando um contato amistoso com o vendedor de camisetas ou explodindo o óleo da fritadeira na chapeira da lanchonete, o Açougueiro vai se embrenhando por cada canto da arena e driblando toda e qualquer pessoa que atravesse seu caminho. Há alguns anos, quando ainda vigorava esse modismo léxico/conceitual, há quem chamaria Armadilha de “cinema-gameplay”.
Evidentemente, é um trabalho que nos convida a refletir sobre a moralidade das personagens por quem torcemos ou com quem nos relacionamos em algum nível (como um quinhão dos últimos longas de Shyamalan também o são). Sobretudo a partir do momento, próximo ao desfecho da fita, em que conhecemos sua esposa e sua residência, é notável que Cooper é uma espécie de subversão da figura arquetípica do patriarca da família nuclear americana; loiro e de porte atlético, ele demonstra um senso de humor bonachão e um protecionismo afetuoso em relação à filha Riley. Mesmo quando sua faceta assassina é desvelada ao público, logo nos primeiros minutos de projeção, em momento algum deixamos de vê-lo como um pai atencioso que faria de tudo para proteger sua filha; proteger mesmo, e não apenas esconder dela seu lado oculto. A bem verdade, jamais paramos de torcer por Cooper. Nós, enquanto público, queremos ver o assassino se safar, torcemos para que ele escape, quebramos a cabeça tentando antever como O Açougueiro, ensaboado como ele só, irá conseguir tapear um membro da equipe da cantora, causar uma distração, arranjar algum disfarce — tudo isso sem levantar suspeitas aos olhos de Riley, ao cometer constantes escapadas da platéia do show. Todo o desenrolar desse carretel é muito engenhoso; Shyamalan compacta a trama em menos de duas horas de minutagem e não perde tempo ao conectar uma ação à outra, ao tirar o protagonista de uma enrascada e logo metê-la na seguinte, enquanto à distância a pequena curte o espetáculo de sua diva número um.
Apesar dos apesares, esse amor de pai pra filha a qualquer custo é uma das temáticas centrais do longa, e isso abarca o que está na frente e atrás das câmeras. O cineasta, que já havia produzido e participado ativamente da campanha de promoção do filme Os Observadores, de sua filha Ishana, dá o papel da popstar Lady Raven em Armadilha a sua outra cria, Saleka, que não obstante compõe e canta uma bateria de canções originais criadas para o longa. Se a performance da novíssima atriz (é sua estreia na atuação para cinema) não foi tão bem recebida por certos estratos do público, sobretudo nos momentos em que a narrativa exige uma participação mais substancial de sua personagem (apesar de particularmente me parecer que ela se encaixa, sem ressalvas, no universo diegético desses jogos de cena arquitetados por Shyamalan), pelo menos quando Lady Raven está ali em cima, no palco, vemos um perfeito dublê da arquetípica estrela do pop contemporâneo, com seu poder mobilizador e encantador de milhares de fãs adolescentes.
Se há algo que precisa ser frisado em Armadilha, conforme pontuamos de certo modo ao início destas linhas, é uma constatação que pode ser feita sobre o cinema de Shyamalan como um todo já há alguns filmes (desde, pelo menos, o lançamento de Vidro): o cineasta, hoje, prega para convertidos. Parece ter se cansado de projetos de caráter mais industrial (como O Último Mestre do Ar e Depois da Terra, este talvez sua fita mais fraca) e, simultaneamente, entendido que jamais voltará a rodar algo que atinja um patamar de unanimidade, como foi o já longínquo O Sexto Sentido. A essa altura de sua carreira, Shyamalan pelo visto compreende que está filmando para um público algo guetificado, dos que entendem as regras do jogo e compram seu barulho. Isso não é, necessariamente, algo ruim – ao invés de relaxar ao identificar essa pretensa zona de conforto, ele está filmando com uma boa regularidade (um filme a cada um ou dois anos), numa gama de narrativas bem diversificada (Vidro, Tempo, Batem à Porta e Armadilha são todos radicalmente diferentes entre si), sob orçamentos econômicos (suas fitas são baratas para os atuais padrões hollywoodianos, e as últimas andam sendo minimalistas até na quantidade de locações) e com um grande aproveitamento qualitativo. E, por incrível que pareça – à revelia de ser eterna persona non grata para os formadores de opinião da crítica americana, de ter direcionado o leme de sua obra rumo a um caminho estritamente voltado às suas preocupações autorais, de cimentar um estilo que aborrece um público não familiarizado com seus expedientes – ele é capaz de fazer um filme como Armadilha, que mesmo produzido por uma Warner Brothers que hoje sabidamente anda enxugando radicalmente os custos, engavetando ou dinamitando fitas já prontas e cancelando o desenvolvimento de outras tantas, não apenas consegue ver a luz do dia, como também apresenta proveitoso desempenho comercial para um longa de seu porte. Isso, para o circuitão de hoje em dia, é um verdadeiro milagre, desses que apenas M. Night Shyamalan mostra-se capaz de operar.
ARMADILHA (2024), dir. M. Night Shyamalan.
Sinopse: Um pai leva a sua filha para o show de uma cantora pop. Ao perceber uma movimentação estranha no local, descobre que tudo havia sido armado para capturar um serial killer, que é ele mesmo.
Duração: 105 minutos.
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Muito boa crítica. Gostei do filme, ele é quase histérico em certos momentos. O humor aplicado é muito perspicaz, o espectador vai rindo de nervoso do ridículo das situações. E a taylor swift racializada desse universo esmurra a nossa, que jamais teria coragem para tamanhos atos heroicos.