RECORTES CRITICA: Afire (2023)
Crítica sobre o vencedor de Melhor Filme Estrangeiro na 47ª Mostra de SP, por Igor Nolasco.
É fato que Christian Petzold sagrou-se, nos últimos anos, como um dos cineastas europeus mais importantes e reconhecidos em atividade. Seus filmes, premiados com altos galardões dos festivais de cinema internacionais, andam marcando presença nas mostras e festivais brasileiros e até mesmo conseguindo alguma penetração em nosso circuito comercial, cada vez mais avesso a lançamentos que fogem do óbvio. Incensado por uma certa parcela da cinefilia brasileira, Petzold nada nessa contracorrente do parque exibidor com Afire, seu novo longa, que chega a algumas salas no mês de novembro, após passagem pela Mostra de Cinema de São Paulo.
Segunda etapa de uma trilogia tematizada em alegoria aos elementos da natureza e embasada na mitologia alemã – após Undine (2020), representativo da água – Afire é, como sugere o título adotado pelo mercado anglófono e replicado pela distribuição brasileira, a obra que simboliza o fogo. Ambientado em uma densa floresta, que desde o princípio enche os planos com sua vastidão, de início ele parece narrativamente (e mesmo esteticamente) próximo às narrativas e aos visuais do cinema de Eric Rohmer, inspiração confessa do diretor1. Dois amigos vão juntos à casa que a mãe de um deles mantém para aluguel em meio ao bosque, apenas para descobrir, chegando lá, que um dos quartos já está ocupado por uma mulher, conhecida de uma conhecida da proprietária. O que se desenvolve a partir disso vai muito além da tradicional esquemática do “filme de verão”, jogando com a relação entre às três personagens e uma quarta, que aparece logo depois; suas expressões de sexualidade, seus dilemas interiores e a iminência do perigo externo que surge a partir do momento em que a espessa mata onde o grupo se encontra começa gradualmente a ser consumida por queimadas, que ameaçam chegar à casa já marcada pelas tensões interpessoais.
No centro desse caldeirão de relações, Petzold situa seu protagonista, Leon, como o personagem que é, de longe, o mais deslocado dos demais. Representado (por um jovem Thomas Schubert, cuja escalação mostra-se mais que precisa) como um escritor introspectivo e ora ranzinza, que anda às voltas com a redação de um romance, ele a priori mostra-se vocalmente insatisfeito com a presença de uma estranha na casa que deveria lhe representar isolação; a observa de dentro de casa enquanto ela transita pela clareira, vestido vermelho esvoaçante e personalidade inquieta, e em outros momentos mantém-se à distância enquanto os outros nadam, os corpos à mostra. Se a hóspede inesperada, Nadja (verdadeiro centro do filme, vivida por Paula Beer, que a essa altura do campeonato já firmou-se como habitué / colaboradora de Petzold), eventualmente lhe desperta algum tipo de interesse, a maneira que ele encontra de mediá-lo é lhe oferecendo, relutante, o manuscrito no qual está trabalhando. A reação de Nadja ao conteúdo da resma passa longe de ser positiva – por motivos explorados de forma direta e também subtextual – e a partir daquele momento, o paraíso perdido daquelas personagens começa a, efetivamente, ruir.
Em uma abordagem mais naturalista, que distancia-se (ao menos parcialmente) da premissa mais fantástica exigida por um filme como Undine, Petzold ainda assim sabe explorar visualmente o espaço contido onde a maior parte da ação é levada a cabo, em composições visuais que passam longe do óbvio e do protocolar. Na forma como captura o medo do desconhecido quando Leon e seu amigo Felix precisam adentrar a pé os últimos quilômetros da floresta para chegar à casa pela primeira vez, nas sequências noturnas que assumem um caráter parcialmente onírico ao serem realizadas explicitamente à moda da “noite americana”, nas escolhas narrativas, tonais e imagéticas que toma quando a chegada do fogo torna-se implacável, Petzold entrega um trabalho que constantemente se envereda pelo imprevisível.
O grande objeto de interesse em Afire está no quadrado formado pelas quatro personagens isoladas na casa; Leon em sua vacilante aproximação de Nadja e Felix em seu envolvimento com o último integrante a ingressar no núcleo, Devid, sacramentado em um breve porém ávido beijo que é um dos momentos mais importantes de todo o filme. Ao explorar as idiossincrasias da experiência humana em meio à iminência do desastre acachapante, o cineasta traz, com este, a virada que serve como divisora de águas, sem entregar à natureza um papel de senhora suprema, a subjulgar os seres vivos – na medida em que a minutagem progride, as consequências das atitudes tomadas por cada personagem em meio aos jogos (de poder) na casa também vem à tona – não despidas de algumas surpresas.
Sustentando-se como obra individual e bem-acabada mesmo à parte do conceito de “trilogia elemental” esquematizado por seu diretor, Afire certamente será um filme ao qual o público de Petzold voltará quando o projeto estiver completo com o lançamento de seu próximo longa. Por seu extraordinário poder de síntese, talvez possa ser uma escolha interessante para se apresentar um espectador não familiarizado ao cinema do realizador alemão, e lhe despertar o interesse em sua obra. Independente de tais conjecturas, ver uma produção desse porte chegando ao circuito comercial brasileiro, ainda que em um número pingado de salas, é algo digno de admiração.
AFIRE (2023), dir. Christian Petzold [trailer].
Sinopse: Férias à beira-mar tomam um rumo inesperado quando Leon e Felix chegam à sua casa de férias e descobrem que Nadja, uma mulher misteriosa, já está lá. Enquanto um incêndio florestal ameaça o bem-estar dos residentes da casa, um relacionamento entre eles é iniciado.
Duração: 103 minutos.
Obrigado por ler esta crítica da Recortes de Película!
A Recortes tem como interesse fornecer para sempre seu conteúdo de forma gratuita. Se você aprecia o nosso trabalho, considere tornar-se um inscrito pago pelo Substack ou fazer uma contribuição individual.