📝 ensaios e entrevistas
lidando com a abstração: como criticar o cinema experimental?
Nessa última semana, o crítico de cinema Juan Camilo Velásquez publicou um artigo na Notebook discutindo o “impressionismo digital”, uma (mais ou menos) nova tendência do cinema contemporâneo.
Usando o exemplo de filmes como o terror Skinamarink, o documentário The Human Surge 3 e a mais recente maluquice de Harmony Korine, Aggro Dr1ft, Velásquez destacou um interessante paradoxo com o qual nos deparamos hoje. Embora o realismo nunca tenha sido tão acessível com a contínua evolução da tecnologia fotográfica, esse mesmo avanço faz com que cineastas modernos se interessem mais pelos ares nebulosos do impressionismo que, por sua essência, rejeitam esse formato naturalista.
Conforme o texto se desenrolava, me peguei pensando um pouco em como o uso dessa estética influenciou parcialmente uma resposta crítica fervorosa para estes filmes, particularmente sobre o Skinamarink. Dada sua natureza experimental, fortemente inspirada pelo influente Wavelength (1967), a resposta crítica inicial foi (para além dos clamores hiperbólicos de “genial” e “autoindulgente”) de que o filme seria “difícil de se criticar”, e que seus espectadores deveriam evitar interpretá-lo e sim experienciá-lo. Mas isso é uma opinião crítica meio sem graça, não acham?
Por uma fortuita coincidência, acabei assistindo a uma palestra nesse último final de semana que lidou com esse exato tema. Num evento organizado pelo Festival Ecrã sobre a crítica de cinema e a prática experimental, o crítico Filipe Furtado explorou a dificuldade de se escrever sobre o cinema não-narrativo. Afinal, como é possível estabelecer um diálogo com aquilo que não segue lógicas narrativas? Alguns críticos alegariam, inclusive, que isso poderia se tratar de uma tarefa supérflua, como é o caso do renomado Serge Daney. Em uma entrevista de 1977 para a Thousand Eyes Magazine, Daney, ao se referir a cineastas de vanguarda como Stephen Dwoskin e Jackie Raynal, opinou que a parte menos interessante de seus filmes seria sua discussão crítica. Segundo ele, a posição do crítico já não se justificaria mais nesse caso, porque estes filmes “não precisariam de mediação”, visto que a maioria deles atuaria diretamente nos “processos primários da percepção”.
Furtado, por outro lado, disse preferir ver o ato da escrita como “uma expansão do ato de ver”, abordando a crítica de forma mais experimental. Para exemplificar isso na palestra, ele mencionou um de seus textos críticos favoritos: “Edinburgh Encounters”, escrito em 1975 por Jonathan Rosenbaum. Nesse texto, Rosenbaum narra sua ida ao Festival de Edimburgo com o intuito de desmistificar seu processo crítico traçando a experiência de assistir a quatro filmes “de vanguarda”, relatando sobre cada um deles 1) suas expectativas, 2) a experiência de assistí-los e 3) suas reflexões pós-sessão:
Qualquer “leitura” de uma obra modernista implica um diálogo perpétuo entre o espectador e o seu texto, e eu tentei testemunhar esse processo na fórmula criada para lidar com os filmes tratados a seguir. […] Fiz minhas observações de forma deliberadamente confessional e provisória, a ponto de causar constrangimento, em um esforço para desmistificar, se possível, algumas das atitudes mais rígidas descritas acima.
Nada disso é para deslegitimizar o trabalho crítico de autores como Daney1, mas sim para enaltecer a percepção crítica diferenciada de outros críticos também citados por Filipe em sua palestra, como Fred Camper, Shiguéhiko Hasumi, o casal Manny Farber e Patricia Patterson, entre outros. Cada um desses críticos trouxe à tona maneiras alternativas de abordar o cinema experimental, que demonstram que a crítica não precisa se reduzir a um exercício psicoanalítico, de imposição de significados.
A ideia de que filmes experimentais e não-narrativos são “difíceis de se criticar” surge precisamente da tentativa de aplicarmos estruturas a obras que não seguem lógicas formais, nessa crença de que existem obras que precisam de “mediações”. E é na fuga dessas tradições que justamente encontramos a beleza da crítica: na construção de formas de diálogo inusitadas, que respeitam a singularidade dessas obras sem tentar encaixá-las em moldes teóricos pré-existentes e permitem a sistematização de novas teorias do cinema.
entrevistas da semana
Catherine Breillat, The Film Stage e Filmmaker
🤔 o que assistir nesse final de semana?
8º Festival Ecrã (gratuito)
O Ecrã, festival de cinema experimental tradicional do Rio de Janeiro, está rolando num formato online e gratuito até este domingo (07/07)!
Disponível até 7 de julho.
mubi ($): Jamie Babbit
A MUBI disponibilizou o filme Nunca Fui Santa (1999), clássico do cinema LGBTQ+ dirigido pela cineasta Jamie Babbit.
Sinopse: Megan é uma garota popular, líder de torcida e namorada do aluno mais bonito do colégio. Filha de uma família bastante conservadora, ela é enviada pelos pais a um acampamento de terapia de conversão para “curar” seu lesbianismo.
Disponível por tempo indeterminado.
🍿 links de interesse
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Estamos falando de um dos co-editores da era de ouro da Cahiers du Cinèma e fundador da revista Trafic, afinal.