📝 ensaios e entrevistas
em defesa das limitações do cinema
No ano de 1995, o New York Film Critics Circle (NYFCC) decidiu premiar o cineasta Jean-Luc Godard em reconhecimento ao conjunto de sua obra como realizador e crítico de cinema. Como era de se esperar do homenageado, Jean-Luc recusou a premiação, respondendo por fax com uma lista de motivos pelos quais ele não aceitaria a homenagem . A primeira delas: "JLG, ao longo de toda a sua carreira como moviemaker, não foi capaz de impedir [Steven] Spielberg de reconstruir Auschwitz."
Godard sempre expressou profundo desgosto em relação a forma que o cinema tentava retratar o Holocausto, seja com o já citado A Lista de Schindler ou o documentário Shoah, do francês Claude Lanzmann. Segundo JLG:
O único filme real a ser feito sobre eles [os campos de concentração] – que nunca foi feito porque seria intolerável – seria se um campo fosse filmado do ponto de vista dos torturadores e de sua rotina diária […] A coisa verdadeiramente horrível sobre estas cenas não seria o horror por si, mas a banalidade do seu cotidiano.1
A discussão acima me veio à mente enquanto eu lia o mais recente ensaio do crítico Leonardo Goi, “Killers of the Flower Moon” and the Pain of Perspective. Estaria o novo filme de Martin Scorsese contando a história da nação indígena Osage “da maneira correta” sendo ela narrada sob a perspectiva de seus assassinos? Parte da crítica pontuou, por exemplo, que a personagem de Mollie, estrelada por Lily Gladstone, é ocasionalmente escanteada na narrativa em prol do personagem de Leonardo DiCaprio, e por motivos como este, a obra de Scorsese seria “limitada”.
Faz poucos meses, na verdade, que uma discussão similar ocorreu com Oppenheimer, último filme de Christopher Nolan. O diretor Spike Lee chegou a questionar o fato da obra não mostrar visualmente os efeitos da bomba atômica sob o povo japonês. Nolan retrucou posteriormente essa ideia numa entrevista, reiterando que ele tinha como enfoque a subjetividade do cientista responsável pela bomba. Mas façamos uma pergunta: que poderia um cineasta britânico revelar com a espetacularização de uma atrocidade que acometeu uma nação que não a sua? E a omissão desta cena se trata necessariamente de um problema? Ou um reconhecimento do alcance do autor com seus próprios limites artísticos?
Não há como negar, Scorsese nunca conseguirá transportar à tela a inteiridade da história dos povos Osage, assim como Nolan não possui propriedade cultural para falar do sofrimento do povo japonês pós-2ª Guerra Mundial, mas é a partir dessas confissões artísticas que suas respectivas obras respiram. Toda obra de arte é limitada por essência, mas não se trata de um defeito quando elas reconhecem suas próprias limitações. Em seu texto para a L.A. Times, o crítico Justin Chang traz um excelente ponto:
Filmes que tentam fazer algo diferente, que reconhecem que "menos" pode, de fato, ser "mais", são facilmente criticados. “Ele é subjetivo demais!" ou "omite um ponto de vista crucial!" são consideradas críticas substanciais em vez de declarações essencialmente vazias em termos de valor. Às vezes nos dizem, em questões de arte e narrativa, que representação não é endosso; mas não nos lembram com a mesma frequência que omissão não é apagamento.
Assim como comentou Christopher Cote, Osage consultor linguístico de Scorsese, nós só poderíamos lidar cinematograficamente com a perspectiva de Mollie e de sua família com um cineasta Osage. E para lidar com o peso histórico de Hiroshima e Nagasaki, nós podemos nos voltar para os expoentes do cinema japonês.2
É fato que nós precisamos de mais vozes no cinema. Precisamos, aliás, ouvir mais vozes marginalizadas já presentes nele. Só temos a ganhar artisticamente com mais obras das mais diferentes perspectivas. Mas isso não significa que uma obra de arte precisa ser composta por todas nossas vozes ao mesmo tempo. Francamente, isso não é possível. O cinema é uma arte que alcança um de seus maiores potenciais justamente com a ideia da limitação, da falta, da omissão, da ausência. Para parafrasear o diretor Pedro Costa: o bom cinema é “uma porta fechada que nos deixa a imaginar”.
entrevistas da semana
Pedro Costa, The Film Stage e Sabzian
Hirokazu Kore-eda, The Film Stage e O Globo
Frederick Wiseman, The Film Stage e Hyperallergic
🤔 o que assistir nesse final de semana?
e-flux (gratuito): Jonas Mekas
A plataforma de streaming e-flux disponibilizou Award Presentation to Andy Warhol (1964), do cineasta norte-americano Jonas Mekas.
Sinopse: Em 1964, após Andy Warhol se recusar a aparecer publicamente para receber o prêmio anual de Cinema Independente da revista Film Culture, o cineasta Jonas Mekas dirigiu Andy num documentário em que a premiação é simulada.
Duração: 12 minutos. Disponível até final de dezembro.
prime video ($): Hong Sang-soo
A Prime Video disponibilizou nessa última sexta-feira (24/11) o filme Filha de Ninguém (2013), do cineasta sul-coreano Hong Sang-soo.
Sinopse: Uma estudante de cinema sonha em se tornar atriz. Quando descobre que sua mãe está se mudando para o Canadá e que seus colegas estão falando mal dela por conta do relacionamento que teve com um professor casado, ela se enche de dilemas existenciais.
Duração: 90 minutos. Disponível por tempo indeterminado.
🍿 links de interesse
💕 Para a Gagosian Quarterly, o crítico de cinema Carlos Valladares escreveu um excelente ensaio, “Kiss Me Stupid”, no qual ele examina a história da comédia romântica, construindo um cânone expandido sobre o gênero [ensaio].
🇧🇷 O Festival de Brasília anunciou nesta quarta-feira (29/11) os filmes selecionados para a sua 56ª edição. O homenageado deste ano será o ator Antônio Pitanga. A mostra começa semana que vem, entre os dias 9 e 16 de dezembro [site].
✊🏾 Comentada na Recortes #33, foi lançado na última quarta-feira (22/11) o streaming Ubuplay, uma plataforma de cinema online gratuita dedicada inteiramente ao cinema negro, realizado e protagonizado por pessoas pretas. É só cadastrar e assistir! [site]
🗞️ O Espaço Itaú Augusta completou nessa última sexta-feira (24/11) 30 anos de idade. Em homenagem, o jornalista Vilmar Ledesma resgatou uma crônica do escritor Caio Fernando Abreu comemorando a abertura do espaço, na época conhecido como “Espaço Banco Nacional de Cinema” [site].
📄 A Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou nesta quarta-feira (22/11) uma proposta para regularizar plataformas de streaming. A proposta requisita uma cota mínima de produções brasileiras no catálogo dos streamings com faturamento bruto igual ou superior a R$ 96 milhões. [artigo].
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Trecho de uma fala de Godard numa entrevista publicada na Cahiers du Cinéma em 1963 sobre seu filme Tempo de Guerra (1963). Para mais informações sobre o tema, vale conferir o artigo “Godard’s List: Why Spielberg and Auschwitz Are Number One”, de Duncan Wheeler.
P.S.: A proposta de Godard parece ter uma similaridade (parcial) ao novo filme de Jonathan Glazer, The Zone of Interest.
O próprio Godzilla Minus One é um bom filme complementar para Oppenheimer.
excelente conteúdo!
bom demais, Pedro!