📝 ensaios e entrevistas
uma contraindicação
Entre os grandes lançamentos de bilheteria do circuito comercial nos últimos meses, temos acompanhado com frequência o clamor midiático pelo sucesso da dupla Barbie e Oppenheimer. No entanto, neste mesmo período em que ambos filmes iniciaram sua jornada pelo circuito norte-americano, um terceiro filme chamou bastante atenção por seu suposto sucesso orgânico. Este chegou ontem às salas de cinema brasileiras. Trata-se do filme Som da Liberdade. Hoje, gostaria de fazer uma contraindicação.
Filmado e produzido em 2018 pela 20th Century Fox, mas engavetado após a aquisição do estúdio pela Disney, o filme ultrapassou a marca de US$ 150 milhões em bilheteria nos EUA. Este sucesso se deve em grande parte por uma forte divulgação midiática feita por canais de extrema-direita, como o canal Fox News, assim como alguns charlatões do mesmo espectro político, como o magnata Elon Musk, a família Trump, e algumas instituições religiosas, que fecharam sessões em cinemas norte-americanos para garantir que fiéis assistissem ao filme1.
A trama acompanha a história “real” (com muitas aspas) de um ex-agente do Departamento de Segurança Interna dos EUA que “fazia justiça com as próprias mãos" para combater o tráfico sexual de crianças. Este agente se desliga do DSI para comandar a "Operação Ferrovia Subterrânea", uma polêmica ONG norte-americana antitráfico sexual que, na vida real, nunca conseguiu comprovar a veracidade de seus ‘louros’2. Trata-se, em resumo, de uma grande publicidade para impulsionamento do QAnon, um movimento conspiratório da extrema-direita norte-americana que crê na existência de uma rede de tráfico sexual de crianças a serviço de uma elite global, um dos seus braços sendo o Partido Democrata norte-americano.
A obra já adentra a discussão política do país a passos de formiga. Nesta quarta-feira (20/09), por exemplo, a Família Bolsonaro e alguns de seus aliados participaram da pré-estreia do filme em Brasília. Na manhã desta quinta-feira (21/09), o crítico Pablo Villaça revelou que a produtora do filme fechou uma parceria com a Brasil Paralelo, uma empresa mediatech responsável por séries e documentários revisionistas, com viés de direita. Não se assuste se você ouvir de algum parente nas próximas semanas que este filme se trata de uma “denúncia para algo que a grande mídia não quer falar a respeito”. Dadas as informações relatadas acima, a Recortes recomenda o completo boicote ao filme. Gostaríamos que nossos leitores (e conhecidos próximos) não caíssem em buracos de conspiração.
Aos curiosos sobre os possíveis méritos artísticos do filme, o escritor Inácio Araújo redigiu uma crítica para a Folha de S. Paulo, pontuando como seus piores problemas o fanatismo religioso intrínseco à obra e a retratação racista de latino-americanos:
O problema deste filme não é ser de extrema direita ou não (claro que é: Mel Gibson é creditado como produtor-executivo). A representação dos rebeldes colombianos não é das mais simpáticas, mas isso é um detalhe quase irrelevante. Integra-se à visão quase sempre repugnante da "raça latina" —para usar a terminologia neorracista anglo-saxã.
O problema é investir em um filme de assunto tão delicado para, de modo clandestino, introduzir o tema de uma humanidade tão sórdida que só pode mesmo livrar-se de seus pecados pela obra de um diálogo com Deus.
Para mais informações sobre toda a situação envolvendo o filme, confira o excelente artigo ‘Sound of Freedom wants to raise awareness about child trafficking. Here’s what it’s really doing.’, da escritora Aja Romano, publicado nesta segunda-feira (18/09) para o portal digital Vox.
entrevistas da semana
🎏 cobertura de festivais
a 80ª edição do festival de veneza
Terminou no comecinho deste mês (09/09) a última edição do Festival Internacional de Cinema de Veneza, o mais tradicional festival de cinema do mundo.
Com a greve dos atores e roteiristas de Hollywood ainda em andamento, o tapete vermelho do festival foi marcado pela grande ausência de artistas vinculados aos filmes da seleção. Como comentamos há algumas edições da Recortes, os atores vinculados ao sindicato não podem para produções enquanto a paralisação estiver em andamento. Alguns, no entanto, por estarem vinculados à produções de menor porte ou financiadas por produtoras que já aceitaram as condições requisitadas pelos sindicatos, puderam a marcar presença no Festival. Foi o caso do ator Adam Driver, protagonista do mais novo filme de Michael Mann, Ferrari, que tomou tempo de sua coletiva para declarar seu apoio incondicional à greve.
No espaço da premiação, o júri presidido pelo diretor Damien Chazelle presenteou Pobres Criaturas, do grego Yorgos Lanthimos, com o Leão de Ouro, prêmio principal da mostra. O filme estrelado por Emma Stone, um ‘Frankenstein feminista’, conta a história de uma jovem que é trazida de volta à vida por um cientista maluco. Ela foge com um advogado por diferentes continentes exigindo igualdade e libertação. Estreia em território brasileiro em breve, no Festival do Rio.
O segundo maior prêmio do festival, o Leão de Prata, foi entregue para o mais novo filme de Ryūsuke Hamaguchi, Evil Does Not Exist. Na obra, um embate surge quando o lenhador de um vilarejo no interior do Japão descobre que uma empreiteira irá construir um empreendimento turístico na sua região. Curiosamente, o último filme de Hamaguchi, Roda do Destino, também venceu o Leão de Prata na edição de 2021 do Festival de Veneza.
Não deixe de conferir a lista completa dos premiados no site oficial do Festival de Veneza!
🤔 o que assistir nesse final de semana?
e-flux (gratuito): Tony Cokes
A plataforma de streaming da e-flux disponibilizou o curta-metragem Fade to Black (1990) do diretor Tony Cokes.
Sinopse: Dois homens negros discutem em voiceover certos eventos "casuais" na vida e no cinema que passam despercebidos ou são desconsiderados pelos brancos - gestos, hesitações, olhares, comentários improvisados, piadas - detalhes de uma ideologia de racismo reprimido.
Duração: 32 minutos. Disponível até final de setembro.
mubi ($): Gregg Araki
A MUBI disponibilizou o longa-metragem Mistérios da Carne (2004), do cineasta Gregg Araki
Sinopse: Um garoto acorda machucado, sem memórias, e cresce acreditando que foi abduzido. Após descobrir-se gay, vira garoto de programa e vai para Nova Iorque. Lá é procurado por um colega de escola que acredita ter pista sobre o ocorrido no dia fatídico.
Duração: 105 minutos. Disponível por tempo indeterminado.
🍿 links de interesse
🇧🇷 Está definido: O filme que representará o Brasil na próxima edição do Oscar será o mais recente documentário de Kléber Mendonça Filho, Retratos Fantasmas [artigo].
🇨🇳 Para o Festival Internacional de Documentário de Amsterdam, o cineasta chinês Wang Bing, convidado de honra do evento, compôs uma lista de dez títulos essenciais do cinema chinês contemporâneo [artigo].
🎾 A próxima edição da Mostra de SP contará com uma retrospectiva de 23 filmes em homenagem ao cineasta italiano Michelangelo Antonioni, autor de clássicos como Blow Up – Depois Daquele Beijo e A Aventura [artigo].
🇹🇼 Para a revista AnOther, o escritor James Balmont fez um admirável guia para cinéfilos interessados em conhecer o novo cinema taiwanês. A lista inclui clássicos de cineastas como Edward Yang, Hou Hsiao-Hsien, Tsai Ming-Liang [artigo].
🐘 A Editora Elefante anunciou o lançamento de uma nova tradução da escritora bell hooks: Cinema vivido: raça, classe e sexo nas telas, com análises a partir de um olhar feminista e antirracista de obras de Quentin Tarantino, Mike Figgis, John Singleton, Julie Dash e Spike Lee. [pré-venda].
🌎 Como comentado acima, o Festival do Rio já anunciou as primeiras atrações internacionais da edição deste ano, trazendo obras de diretores como Yorgos Lanthimos (Pobres Criaturas), Celine Song (Vidas Passadas), Todd Haynes (May December), Hirokazu Kore-eda (Monster) e Sofia Coppola (Priscila) [artigo].
🌋 Uma recomendação para os leitores que residem em São Paulo – O SESC Pompeia inaugurou nesta terça-feira (19/09) uma mostra inédita da artista audiovisual Ana Mendieta. A mostra conta com 21 filmes restaurados, todos feitos pela artistas entre os anos de 1972 e 1981. A mostra ocorre até janeiro de 2024 [website].
📝 Os críticos de cinema da Folha de S. Paulo, Inácio Araújo e Sérgio Alpendre, estarão promovendo a sétima edição da Oficina de Crítica Cinematográfica, um curso online voltado para o desenvolvimento da prática da crítica. Os encontros se darão por Zoom. Começa no mês que vem, a partir do dia 4 de outubro [artigo].
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Este agente, aliás, foi recentemente desligado da ONG devido a múltiplas acusações de assédio sexual.