📝 ensaios e entrevistas
o cinema na era da inteligência artificial
Duas semanas atrás, o diretor Joe Russo, co-diretor de filmes como Vingadores: Guerra Infinita (2018) e Ultimato (2019), concedeu uma entrevista para o blog Collider sobre “o futuro do entretenimento”. Ao ser questionado sobre como a inteligência artificial poderia mudar o cinema, Joe respondeu o seguinte:
“[…] Então, o que você poderia fazer com ela, obviamente, seria usá-la para modelar narrativas e modificá-las. Desse jeito, você tem histórias em constante evolução, seja num jogo, num filme ou numa série de TV. Você poderia entrar em sua casa e dizer à IA: “Eu quero um filme estrelando meu avatar fotorrealista e a Marilyn Monroe. Quero que seja uma comédia romântica, pois tive um dia difícil”, e ela apresentaria uma história competente com diálogos que imitam sua voz. De repente, você tem uma comédia romântica de 90 minutos estrelada por você, feita especificamente para você.”
Há algo particularmente distópico em reduzir arte, um esforço humano e de trabalho criativo, a um formato de conteúdo que nasce após você dizer a seu computador qual fantasia você gostaria de ter como forma de distração da sua vida. É assombroso, para início de conversa, um homem resgatar a figura de Marilyn Monroe como a primeira pessoa para a qual ele imaginaria utilizar a imagem sem seu devido consentimento, e ainda mais num cenário macabro como este. Mas deixando de lado essas ideias assombrosas, será que nós temos que nos preocupar sobre o futuro estado do cinema frente essas tecnologias?
A fala de Joe Russo surge em um momento “curioso” – uma semana antes da declaração de greve da Associação de Roteiristas da América (WGA). A categoria requisita, para além da revisão do piso salarial em relação às séries de streaming, a regularização de ferramentas de IA, como o ChatGPT. De acordo com um recente artigo da The Hollywood Reporter, vários estúdios já consideram o uso da IA para gerar roteiros “originais” baseados em suas propriedades intelectuais. A intenção seria contratar escritores após a paralisação da categoria para revisar esses roteiros criados artificialmente. Dentro das propostas da WGA, isso não seria permitido. As ferramentas seriam utilizadas apenas para tarefas mais mecânicas, como o auxílio de pesquisa ou no brainstorming de ideias. Sem muita surpresa, a proposta foi recusada.
É verdade que nada impedirá a atual corrente do mercado em defesa da “arte” de IA. Como pontuado pelo crítico A.S. Hamrah em seu novo artigo, Writers vs. robots, a desvalorização do trabalho criativo já é o norte apontado pela indústria do entretenimento há décadas. Não se trata de um desvio momentâneo, mas de um projeto – de ganância, pobreza estética e utilitarismo infértil. Um projeto que acredita que a arte nasce de ações cientificamente calculáveis, concebidas especificamente para o atendimento de necessidades mercadológicas. Quem assistiu ao (ótimo) Matrix Ressurrections (2021) vai ter uma ideia do que estou falando.
Mas cá entre nós, e tendo em mente as questões trabalhistas já apontadas, não acredito que tenhamos tanto pelo que se preocupar por agora. A IA nunca será capaz de substituir a criatividade humana. Obviamente não. Então creio que a verdadeira questão em torno dessa discussão deveria ser: como isso pode nos servir? Porque também não podemos dizer que a inteligência artificial não pode ter algum espaço dentro da produção artística. Alguns roteiristas e cineastas brasileiros seguem o exemplo da WGA, usando ferramentes de IA de forma auxiliar, como relata o diretor Jorge Furtado, do clássico Ilha das Flores (1989):
“Temos que saber usar a IA como um instrumento. Ter consciência de que pode ser uma deflagradora de uma ideia, um ponto de partida para alguma coisa, mas de maneira nenhuma um ponto de chegada.”
Então, novamente, como isso pode nos servir? E se a resposta para essa questão é “potencializar lucros” ou “maximizar audiências”, não entendo por que isso nos poderia ser interessante ou útil. Até sei para quem poderia ser, mas não para nós.
imagens de prazer (pornografia é cinema?)
Na semana retrasada, o diretor-executivo da Cinelimite, William Plotnick, declarou no Twitter que o instituto pretendia preservar os rolos de um filme pornô extremamente raro e possivelmente brasileiro chamado Loira indecente e depravada (1985). Apesar de uma leve comoção na rede por alguns usuários, que condenaram o anúncio como uma suposta defesa da indústria pornográfica, o público mais amplo demonstrou um extenso interesse na restauração do filme como um documento histórico, em particular pelo vínculo do sexo como tema constante na história do cinema brasileiro, em particular pelas pornochanchadas.
Eu admito. O termo “especialista em pornografia” é um tico engraçado. Mas hoje, por incrível que pareça, o pornô possui uma área de pesquisa estabelecida. No Brasil, já chegamos a ter uma edição sobre o gênero pelo Cadernos Pagu, um dos mais importantes periódicos acadêmicos sobre estudos feministas do nosso país. No exterior, podemos apontar para outros exemplos, como o seminal ensaio de Linda Williams, Film Bodies: Gender, Genre, and Excess, no qual a autora argumenta que a pornografia, o horror e o melodrama compartilham uma linhagem comum como “gêneros de excesso”.
Como um adendo, gostaria de compartilhar o anúncio feito pela Cinémathèque Française, que exibirá a mostra L’image des plaisirs, focada justamente na temática do sexo e da pornografia dentro do cinema. Em resposta à declaração do cineasta Jean-Luc Godard, de que "não sabemos como filmar as relações sexuais", os teóricos Nicole Brenez e Luc Vialle montaram uma programação com mais de 200 filmes refutando esta ideia, reunindo artistas como Kenneth Anger, Jean Genet, Barbara Hammer, Coni Beeson, Chantal Akerman, entre outros.
entrevistas da semana
Apichatpong Weerasethakul, Hyperallergic e The Film Stage: Aproveitando a ocorrência da retrospectiva de seus filmes no Lincoln Center, o diretor tailandês concedeu duas entrevistas sobre sua filmografia, seu interesse pela realidade virtual e, curiosamente, seu apreço pelo videogame E.T. the Extra-Terrestrial, para o Atari 2600.
Johnnie To, South China Morning Post: O cineasta chinês comenta sobre as dificuldades da censura às produções de cinema dentro da China e revela o desejo de filmar um terceiro filme para a série Election.
Danièlle Huillet & Jean-Marie Straub, KINOSLANG: O crítico Andy Rector, do blog KINOSLANG, recuperou uma entrevista de 1976 com o casal de diretores feita por John Hughes e Bill Krohn.
🤔 o que assistir nesse final de semana?
youtube (gratuito): Antônio Carlos da Fontoura
Em homenagem à memória de Rita Lee, compartilho um curta-metragem disponível no YouTube do diretor Antônio Carlos da Fontoura, Os Mutantes (1970), com imagens de viagens da banda para o exterior e um show deles no Parque do Anhangabaú.
Sinopse: Uma brincadeira mutante improvisada por Arnaldo Batista, Sérgio Dias e Rita Lee, Os Mutantes, num dia único pelas ruas de São Paulo.
Duração: 7 minutos. Disponível por tempo indeterminado.
mubi ($): Steven Shainberg
A MUBI disponibilizou no dia 01/05 o filme Secretária (2002), do diretor Steven Shainberg.
Sinopse: Uma jovem acaba de receber alta de um hospital psiquiátrico e consegue um trabalho como secretária de um advogado exigente. Lentamente, sua relação profissional se transforma num relacionamento sexual e sadomasoquista.
Duração: 112 minutos. Disponível até final de maio.
🍿 links de interesse
🔫 O penúltimo domingo (01/05) foi o aniversário de 77 anos do cineasta chinês John Woo! [tweet].
🏨 … E também marcou o aniversário de 54 anos do diretor norte-americano Wes Anderson! [tweet].
👩🏫 O último domingo (07/05) foi o aniversário de 80 anos do filme Esta Terra É Minha (1943), de Jean Renoir [trailer do filme].
🎬 O crítico de cinema Richard Brody compilou uma lista para a New Yorker dos melhores filmes independentes do século XX [artigo].
📚 O crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre vai ministrar um curso online de cinema, ‘O Cinema Americano dos Anos 70’, explorando a filmografia de autores da geração da Nova Hollywood como Dennis Hopper, Robert Altman, e John Cassavetes. Começa no dia 6 de junho, com duração de 5 aulas [site].
Obrigado por ler esta edição da Recortes de Película!
A Recortes tem como interesse fornecer para sempre seu conteúdo de forma gratuita. Se você aprecia o nosso trabalho, considere tornar-se um inscrito pago pelo Substack ou fazer uma contribuição individual.
filme secretary