RECORTES CRITICA: Furiosa (2024)
Crítica da sequência do aclamado Mad Max: Estrada da Fúria (2015), por Igor Nolasco.
Quando George Miller anunciou que iria rodar um novo filme da saga Mad Max, com foco total em Furiosa – personagem que roubou a cena e marcou época no longa anterior da série, A Estrada da Fúria – a notícia foi recebida com muito entusiasmo e alguma desconfiança. Afinal, o que há de mais inventivo na construção de mundo dos Mad Max é justamente a forma descompromissada com a qual Miller introduz e trabalha certos elementos, locais, conceitos visuais e períodos históricos dentro do mundo distópico que ele constrói. Muito do que há de memorável no Estrada da Fúria está em uma ou outra sequência onde certas figuras altamente estilizadas surgem abruptamente, tomam os holofotes durante um momento marcante e depois desaparecem, sem maiores explicações (o músico com sua guitarra lança-chamas, o homem com venda nos olhos que atira com duas armas, etc). A ideia de fazer uma “história de origem” para Furiosa, cujo arco narrativo fechava-se tão bem resolvido dentro do que fora anteriormente apresentado, parecia redundante e supérflua – e no entanto era simplesmente impossível mostrar-se totalmente ressabiado em relação a isso, quando o que tínhamos, na prática, era George Miller nos oferecendo outro Mad Max. E quando George Miller te oferece um novo Mad Max, você simplesmente não tem como dizer não. Ainda mais depois de A Estrada da Fúria.
Apesar de todos esses apesares, Furiosa mostra-se, a priori, um retorno promissor a esse universo. A escolha de Anya Taylor-Joy, uma das atrizes do momento, para a personagem antes vivida por Charlize Theron de início pode causar estranhamento – da mesma forma que causou a escolha de Tom Hardy, há uma década, para o papel imortalizado por Mel Gibson. Nos dois casos, deu certo: Hardy soube fazer seu Max discreto e visceral e Anya soube fazer uma Furiosa cuja personalidade ainda está em construção. Quando foram divulgadas as primeiras entrevistas de George Miller acerca do novo filme após as primeiras pré-estreias, alguns veículos mostraram-se horrorizados com o dado de que Taylor-Joy supostamente teria “não mais do que 30 falas”1 nele, o que era noticiado por certos portais – e incensado em discussões pelas redes sociais – como um verdadeiro impropério contra a atriz, como se Miller fosse um misógino contumaz e estivesse dilapidando uma personagem feminina forte e cheia de personalidade que, bom, ele mesmo havia criado. O que aqueles que apresentavam essa informação a um público que ainda não havia assistido ao longa esqueciam de informar (ou propositalmente omitiam, na intenção fomentar esse debate), à época, era que: 1) Taylor-Joy só vai aparecer no segundo ato do filme, após cerca de uma hora de projeção; antes disso, Alyla Browne interpreta Furiosa, durante a infância por uma minutagem substancial; e 2) mesmo quando Taylor-Joy efetivamente aparece como Furiosa, ela passa uma porção de tempo disfarçada entre o séquito do déspota Immortan Joe, fingindo ser… muda! Ora, nada disso interessa aos caça-cliques, imagino. Mas no fim, ficar contando o número de falas da atriz durante a sessão e utilizar isso contra ela, como se uma performance digna de nota estivesse necessariamente atrelada a papéis palavrudos, é ingênuo (pra dizer o mínimo) e só serve pra descreditar a própria Taylor-Joy, que entrega o que é, até aqui, uma de suas melhores interpretações para cinema (tanto nas sequências mais focadas em diálogo quanto naquelas centradas em sua movimentação corporal – e a agilidade dos atores é uma condição sine qua non para uma boa fita de Mad Max).
Miller segue em grande forma, como estava nove anos antes no título anterior da série, pelo qual granjeou aplausos e elogios ao demonstrar tamanha vitalidade e inventividade sendo um cineasta então septuagenário (hoje, octogenário) que há muito não assumia a direção de um grande projeto. O novo trabalho ainda demonstra pulso firme, e dá continuidade a certas escolhas estilísticas do longa anterior enquanto explora novas possibilidades visuais (o contraste do céu nublado cinzento como chumbo, como que prestes a desaguar uma tempestade que nunca chega, com o alaranjado duro das areias é belíssimo). O que decai, de fato, é o que era a grande prata da casa em A Estrada da Fúria: as sequências de ação. Não que Furiosa não tenha boas sequências de ação, mas a maior parte delas, comparadas às do último Mad Max (e, para todos os efeitos, a comparação entre os dois filmes é inevitável – não só na ação, mas em tudo), parece um tanto protocolar. Em A Estrada da Fúria, quase toda perseguição era polvilhada de momentos plasticamente icônicos que coroavam a boa construção rítmica da obra como um todo. Em Furiosa, para além de algumas barrigadas em matéria de ritmo, a verdade é que uma porção dos pegas entre carros-monstros e motoqueiros apocalípticos parece mais como algo rodado por diretores de segunda unidade do que pelo próprio George Miller. Algumas delas cometem o maior pecado que um trabalho de Miller poderia cometer: deixar a ação cair no genérico e no protocolar. Não fossem os efeitos práticos pelos quais a série é, hoje, louvada e reconhecida (ante à grande preferência da indústria hollywoodiana contemporânea pela computação gráfica irrestrita), algumas das perseguições de Furiosa não se diferenciariam muito do que se vê em qualquer outro blockbuster. Isso por si só já atrapalha um pouco as coisas, num filme que, apesar de tão narrativamente emaranhado quanto seu predecessor, não é tão criativo ou bem-resolvido visualmente quanto ele.
É preciso, no entanto, falar de um dos grandes triunfos de Furiosa: Chris Hemsworth no papel do vilão Dementus, que sequestra Furiosa enquanto ela ainda está na primeira infância, retirando-a de um microcosmo algo lúdico em meio à desolação desértica – nos primeiros segundos da sequência inicial do filme, dirigida de forma genial, Miller quase consegue convencer o espectador de que ainda estamos em um mundo pré-apocalíptico, unicamente através da forma como enquadra suas personagens infantis, apenas para bruscamente nos trazer de volta à estética brutal e ao universo mais brutal ainda dos filmes de Mad Max. Mantida prisioneira por Dementus como uma espécie de filha adotiva, a pequena Furiosa, silenciosa e acorrentada, faz oposição total àquele que, para o arco narrativo da obra, será seu nêmesis. Não é segredo pra ninguém que Hemsworth é um competente ator cômico (algo que os blockbusters nos quais ele aparece como protagonista ou personagem menor já exploraram até dizer chega), mas o que Miller faz com ele, aqui, é algo fora da curva para o ator. Não apenas por ser um papel vilanesco, sendo ele um dos notórios mocinhos da Hollywood atual, e nem só por causa de sua caracterização exagerada, com peruca, barba postiça e prótese de nariz – é, mesmo, a interpretação de Hemsworth que sabe balancear seu timing natural para o humor com a atitude impiedosa e a postura de troglodita imponente exigidos pelo papel. Alguns diálogos, em sua boca, estão entre os melhores momentos do conjunto, sobretudo nos confrontos diretos com Furiosa. Há um nível de sutileza na forma como Dementus expõe esse seu humor – ou, pelo menos, algo mais sutil em comparação ao besteirol infantilóide no qual se transformou o grosso do blockbuster americano ao longo das últimas décadas – que destoa completamente do tipo de papel associado a Hemsworth. E isso é bom! Dementus é divertido e tem um jeitão próprio, algo entre o brutamontes e o pernóstico, sendo consideravelmente diferente de Immortan Joe, o vilão do capítulo anterior da saga, que também acaba participando de Furiosa.
Mesmo que associar diretamente um filme ao outro fosse algo esperado, uma vez que a vida de Furiosa na citadela de Immortan Joe seja parte de sua formação enquanto personagem (conforme já estabelecido no Estrada da Fúria), é quando o foco sai de Dementus para firmar-se de vez em Joe e seu séquito que a narrativa de Furiosa parece decidir que o que há de mais interessante, para seu andamento, é remoer aquilo que havia de bom em seu predecessor. Ao invés de focar em construir uma iconografia toda sua, acaba se perdendo ao reverenciar excessivamente a do longa anterior. Aí é que o filme decai, da mesma forma que, por exemplo, Doutor Sono (2016), de Mike Flanagan, decai quando abandona as próprias ideias para passar todo o seu último ato chupinhando a iconografia de O Iluminado (1980). Quando tudo o que Miller faz, nos instantes finais de Furiosa, é recriar o que ele mesmo havia feito em A Estrada da Fúria, ele atinge êxito em… fazer com que o espectador pense, com seus botões: “Nossa, como eu queria estar vendo A Estrada da Fúria”. Talvez o maior erro, nesse sentido, seja fazer de Furiosa um prelúdio imediato para o longa anterior, terminando exatamente no ponto em que aquele começa — e, não satisfeita com isso, a montagem do novo filme ainda decide fechar sua minutagem com um arremedo de cenas marcantes do antigo.
No balanço geral das coisas, Furiosa é uma boa fita de ação feita por um dos maiores artífices vivos do gênero, e uma adição à franquia Mad Max que traz algumas ideias interessantes ao balaio, mas é, acima de tudo, um filme condenado eternamente a permanecer na sombra daquele que o precedeu. Uma pena, considerando que o potencial para um Mad Max é sempre o de uma tela em branco na qual George Miller pode pintar e bordar — e, dessa vez, ele escolheu fazer um quadro por demasiado seguro. Talvez tomar uma direção mais turbulenta e com margem para a imprevisibilidade combinasse um pouco mais com o clima deliciosamente caótico que o diretor vem construindo no deserto australiano desde o final da década de 1970.
FURIOSA (2024), dir. George Miller [trailer].
Sinopse: A jovem Furiosa cai nas mãos de uma grande horda de motoqueiros liderada pelo senhor da guerra Dementus. Varrendo Wasteland, eles encontram a Cidadela, presidida pelo Immortan Joe. Enquanto os dois tiranos lutam pelo domínio, Furiosa logo se vê em uma batalha ininterrupta para voltar para casa.
Duração: 148 minutos.
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Informação inicialmente divulgada em entrevista dada por Miller ao jornal britânico The Telegraph, publicada por Robbie Collin em maio de 2024. Disponível (em inglês) no portal do The Telegraph.